Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, IVª Seção, Acórdão definitivo proferido na queixa n.º 4687/11 17 de maio de 2016 (definitivo em 17/10/2016)

Este Acórdão tornou-se definitivo nos termos do art.º 44.º § 2 da Convenção. Pode vir a sofrer modificações de forma.

 

No caso Liga Portuguesa de Futebol Profissional c. Portugal,

O Tribunal europeu dos Direitos do Homem (quarta Seção), em câmara composta por:

András Sajó, Presidente,

Vincent A. De Gaetano,

Nona Tsotsoria,

Paulo Pinto de Albuquerque,

Krzysztof Wojtyczek,

Egidius Küris,

Iulia Antoanella Motoc, Juízes,

E por Marialena Tsirli, Secretária de Secção,

Após ter deliberado em conferência de 29 de março de 2016, profere o seguinte acórdão, adotado nesta data:

 

O PROCESSO

1. Na origem do caso está uma queixa (n.º 4687/11) dirigida contra a República portuguesa apresentada por uma associação de direito privado português, a Liga portuguesa de Futebol Profissional (a Requerente), perante o Tribunal, em 14 de janeiro de 2011, nos termos do artigo 34.º da Convenção para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a Convenção).

2. A Requerente foi representada por G.G. Rozeira, advogado com domicílio no Porto. O Governo português (o Governo), foi representado pela sua Agente, M.F. da Graça Carvalho, Procuradora-geral adjunta.

3. Invocando os artigos 6.º § 1 e 13.º da Convenção, a Requerente alega que o processo instaurado contra si no Tribunal do Trabalho de Lisboa, não foi decidido de modo equitativo nem em prazo razoável.

4. Em 18 de Novembro de 2014 a queixa foi comunicada ao Governo.

 

OS FACTOS

  1. As circunstâncias do caso

 

5. A Requerente é a Liga portuguesa de Futebol Profissional, associação de direito privado português, com sede no Porto.

6. Organizadora dos campeonatos profissionais de futebol em Portugal, a Requerente tem por associados os clubes e as sociedades desportivas que tomam parte nestes campeonatos.

A. O processo no Tribunal do Trabalho de Lisboa

7. Em 25 de Março de 2002, um jogador profissional de futebol, o Sr. R. (o Autor) intentou contra a Requerente, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, uma ação para declaração de nulidade de duas cláusulas de uma convenção coletiva, de 8 de Setembro de 1999, nomeadamente o artigo 52.º § 1 (ver, adiante, “Direito interno pertinente”): o jogador via aí uma ofensa à liberdade de trabalho para os jogadores profissionais, garantida pelos artigos 47.º e 58.º da Constituição, em caso de rutura dos seus vínculos contratuais com um clube.

8. Em 15 de maio de 2002, a Requerente foi convidada a apresentar as suas observações. Em 12 de Junho de 2002, respondeu sustentando:

- que as cláusulas das convenções coletivas de trabalho relevavam da liberdade contratual,

- que, por isso, não podiam ser submetidas a um controlo de constitucionalidade.

9. Em 19 de Setembro de 2005, o Tribunal do Trabalho de Lisboa rejeitou as pretensões do Autor, por improcedentes, com o fundamento de que:

- o artigo 52.º § 1 da Convenção coletiva não ofendia o direito ao trabalho do jogador;

- que, por conseguinte, esta cláusula não era incompatível com os artigos 47.º e 58.º da Constituição.

 

 

 

B. O processo perante o Supremo Tribunal de Justiça

10. Em 12 de outubro de 2005, o Autor recorreu da sentença diretamente (per saltum) para o Supremo Tribunal de Justiça. Impugnou simultaneamente a sentença da primeira instância perante o Tribunal da Relação de Lisboa, para o caso de o recurso para o STJ não ser admitido.

11. Em 14 de novembro de 2005, o Autor apresentou as suas alegações de recurso. A Requerente respondeu em 21 de novembro de 2005.

12. Por despacho de 1 de março de 2006, o Tribunal do Trabalho de Lisboa admitiu o recurso per saltum interposto pelo Autor.

Em 3 de maio de 2006, o juiz relator do STJ declarou o recurso admissível, entendendo que a lei não proibia o recurso per saltum no âmbito do contencioso social.

13. Em 23 de maio de 2006, o STJ convidou a Requerente a aperfeiçoar as suas alegações de 21 de novembro, o que esta fez em 6 de junho de 2006.

14. Em 31 de julho de 2006, o Ministério Público apresentou parecer, no qual concluía pela admissibilidade parcial do recurso.

Em 5 de Setembro de 2006 as partes foram notificadas do parecer do Ministério Público, o qual aludia ao despacho de 3 de maio de 2006 que admitira o recurso.

15. Em 7 de março de 2007, a conferência (formação semiplena) do STJ proferiu acórdão do qual as partes foram notificadas em 9 de março de 2007. Esse acórdão também aludia à admissão do recurso per saltum por despacho de 3 de maio de 2006.

16. Quanto ao fundo, o acórdão infirmava a sentença recorrida declarando a nulidade das duas cláusulas controvertidas da convenção coletiva de trabalho. No que respeita ao artigo 52.º § 1, a conferência do STJ considerou, nomeadamente:

- que o direito à livre escolha de uma profissão e o direito de a exercer relevavam da competência exclusiva do legislador;

- que, por conseguinte, a cláusula em questão se inseria nas competências da Assembleia da República.

Na sessão de 7 de março de 2007, sete juízes conselheiros tomaram assento na conferência do STJ, entre os quais o juiz C.A.F.C., na qualidade de Presidente.

17. Em 23 de Março de 2007, a Requerente arguiu uma nulidade perante o STJ. Sustentava:

- que a notificação tardia do despacho de 3 de maio de 2006 não lhe tinha permitido contestar a admissão do recurso perante a seção social do STJ;

- que o STJ tinha resolvido a questão litigiosa por meio de uma decisão surpresa, com base num meio que não fora objeto de debate pelas partes, a saber, a inconstitucionalidade na vertente da competência ou inconstitucionalidade orgânica.

18. Em 29 de Março de 2007, o juiz C.A.F.C. foi eleito juiz do Tribunal Constitucional (TC) pela Assembleia da República.

19. Por despacho de 15 de maio de 2007, o STJ rejeitou a reclamação da Requerente, afastando os dois fundamentos pela seguinte forma:

- quanto ao primeiro, o STJ reconheceu que o despacho de 3 de maio de 2006 não lhe fora devidamente notificado, mas relevou que a Requerente não arguira a nulidade dessa falta de notificação, no prazo de 10 dias, como a lei lhe permitia. Em todo o caso, o STJ entendeu que a Requerente tomara conhecimento do despacho por meio do parecer do MP, de 5 de Setembro de 2006;

- quanto ao segundo fundamento, o STJ entendeu que a sua atuação fora legal visto que lhe competia a qualificação jurídica dos factos, nos termos do artigo 664.º do CPC (de acordo com o qual o STJ não está vinculado às alegações das partes em matéria de direito). Segundo o STJ, não podia, pois, ser invocada a inobservância do princípio do contraditório.

20. Em 1 de junho de 2007, a Requerente reclamou perante a conferência da secção social do STJ.

Em 12 de julho de 2007, a seção social confirmou na íntegra o despacho de 15 de maio de 2007. Confirmou, nomeadamente a rejeição do segundo fundamento invocado pela Requerente, considerando no essencial:

- que o Autor tinha suscitado uma questão geral de inconstitucionalidade da cláusula do art.º 52.º § 1 da convenção coletiva de trabalho;

- que a inconstitucionalidade podia incidir sobre o fundo mas também sobre a violação de normas de competência e de exigências formais;

- que, tendo em conta a alegação genérica do Autor, a constitucionalidade da cláusula controvertida podia ser indiferentemente apreciada em qualquer das suas vertentes.

C. O processo perante o Tribunal constitucional

21. Em 21 de julho de 2007, a Requerente interpôs recurso de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional.

Em 5 de Setembro de 2007, o Autor apresentou contra-alegações, concluindo no sentido da inadmissibilidade do recurso de inconstitucionalidade.

Por despacho de 24 de novembro de 2008, o TC delimitou o objeto do recurso de constitucionalidade a uma só questão: a de determinar se o STJ podia decidir o caso quanto ao fundo com base em fundamentos não sujeitos a um debate contraditório das partes.

22. Em 8 de Janeiro de 2009, a Requerente apresentou alegações quanto ao mérito. Em 15 de Janeiro de 2009, o Autor declarou que não pretendia replicar.

23. Por acórdão de 13 de Janeiro de 2010, a 3.ª Seção do Tribunal Constitucional considerou que o STJ não tinha violado o princípio do contraditório, entendendo que a inconstitucionalidade na vertente da competência era uma questão suscetível de ter sido encarada e antecipada pelas partes.

O relator deste acórdão, de 13 de Janeiro de 2010, era o juiz C.A.F.C. visto a proposta do relator inicial não ter sido aprovada pela formação do TC.

24. Em 9 de Fevereiro de 2010, a Requerente arguiu nulidades perante o TC, sustentando, em primeiro lugar:

 - que, em 7 de Março de 2007, o juiz C.A.F.C. tinha presidido à conferência do STJ;

- que, em seguida, o mesmo juiz C.A.F.C. foi relator do acórdão do TC de 13 de Janeiro de 2010.

Em segundo lugar, a Requerente queixava-se do valor das custas judiciais fixadas pelo TC, que entendia atentatório do seu direito de acesso a um tribunal.

25. Em 17 de Fevereiro de 2010, o Autor apresentou a sua resposta à reclamação, a qual não foi notificada à Requerente.

26. Em 25 de maio de 2010, o TC proferiu acórdão. Na fundamentação, reconheceu que o juiz C.A.F.C. tinha subscrito o acórdão de 7 de Março de 2007, pelo qual o STJ havia decidido o mérito da causa, mas entendeu que a questão que se suscitava no acórdão do TC era diferente, porquanto:

- no acórdão sobre o mérito da causa, o STJ havia decidido que a cláusula controvertida da convenção coletiva de trabalho era de competência reservada da Assembleia da República estabelecida na Constituição (inconstitucionalidade orgânica);

- no acórdão de 13 de Janeiro de 2010, o TC apenas se tinha pronunciado sobre a questão de saber se a omissão do convite às partes para se pronunciarem sobre a questão da inconstitucionalidade “orgânica” (isto é, sobre a competência) das cláusulas de uma convenção coletiva de trabalho tinha violado o princípio do contraditório, já que o debate entre as partes se limitara à sua inconstitucionalidade “material”.

Como, no entender do TC, o juiz C.A.F.C. tinha sido chamado a resolver, sucessivamente, questões diferentes, aquele tribunal rejeitou o recurso da Requerente.

27. Em 7 de Junho de 2010, a Requerente arguiu mais uma vez a nulidade perante o TC, alegando:

- que a resposta da outra parte à sua arguição de nulidade com fundamento em que o juiz C.A.F.C. não fora afastado do caso, não lhe fora comunicada pela alta jurisdição,

- que esta comunicação se impunha, uma vez que o TC veio, em seguida, a acolher a tese segundo a qual as questões examinadas pelo STJ e pelo TC eram de natureza diferente.

28. Em 14 de Julho de 2010, o TC rejeitou os diversos fundamentos da reclamação apresentada pela Requerente, considerando:

Em primeiro lugar, quanto á omissão de comunicar à requerente a resposta da outra parte,

- que a lei não autorizava réplica à contestação do Autor;

- por esta razão a falta de notificação não tinha privado a Requerente de nenhum direito processual.

Quanto à segunda questão, suscitada pela Requerente em 9 de Fevereiro de 2010, o TC considerou:

- que a fixação das custas judiciais não estava sujeita a uma fundamentação específica,

- que as custas tinham sido determinadas em razão da complexidade do caso, que era de grau médio.

29. Por acórdão de 9 de Novembro de 2010, o TC rejeitou uma nova reclamação da Requerente sobre a fixação das custas judiciais pelo acórdão de 14 de Julho de 2010. Entendeu que o seu montante era razoável, porquanto:

- o caso apresentava um grau de complexidade média.

- não fora alegado pela Requerente que estes montantes eram de natureza a pôr em risco a sua existência económica.

D. A continuação do processo

30. Em 16 de Novembro de 2010, a Requerente interpôs um novo recurso de constitucionalidade, pedindo ao TC que remetesse o processo ao STJ para que este declarasse o referido recurso admissível.

A parte contrária apresentou a sua resposta em 2 de Dezembro de 2010. O processo foi remetido ao STJ em 14 de Dezembro de 2010.

31. Em 14 de Dezembro de 2010, o TC apresentou a conta de custas, as quais ascendiam a 7 221,60 Euros.

32. Em 16 de Dezembro de 2010, o STJ determinou a remessa do processo ao Tribunal do Trabalho de Lisboa, o que foi cumprido em 17 de Dezembro de 2010.

33. No dia 13 de Janeiro seguinte, o STJ solicitou o Tribunal de Trabalho de Lisboa que lhe devolvesse de novo o processo, uma vez que havia sido suscitada pela Requerente, em 7 de Janeiro de 2011, uma exceção de incompetência absoluta.

Em 18 de Janeiro de 2011, a parte contrária apresentou as suas alegações sobre a exceção de incompetência absoluta.

Em 20 de Janeiro de 2011, o processo foi remetido ao STJ.

34. Em 24 de Fevereiro de 2011, o STJ admitiu o recurso de constitucionalidade e rejeitou a exceção de incompetência suscitada pela Requerente.

Em 25 de Fevereiro de 2011, o processo foi remetido ao TC.

35. Em 14 de Março de 2011, numa formação de juiz singular, o TC rejeitou o recurso de constitucionalidade.

Em 31 de Março de 2011, a Requerente arguiu a nulidade desta decisão.

Em 1 de Abril de 2011, impugnou a mesma decisão perante a conferência do STJ.

Na sequência de um despacho do TC, de 5 de Abril de 2011, o processo foi devolvido à Seção Social do STJ.

36. Por acórdão de 11 de Maio de 2011, a formação colegial do STJ rejeitou a reclamação da Requerente, confirmando o despacho impugnado.

37. Em 18 de Maio de 2011, a requerente interpôs recurso de constitucionalidade perante o TC. A parte contrária pronunciou-se no sentido da rejeição do recurso em 24 de maio de 211.

Em 28 de Setembro de 2011, a formação colegial do TC rejeitou a reclamação da Requerente contra a decisão do juiz singular, de 14 de Março.

38. Por decisão sumária de 21 de Outubro de 2011, o TC rejeitou o recurso de constitucionalidade interposto pela Requerente.

Em 8 de Novembro de 2011, a Requerente reclamou da decisão de 21 de Outubro de 2011. Em 15 de Dezembro de 2011, a formação colegial do TC rejeitou esta reclamação.

 

  1. O DIREITO INTERNO PERTINENTE

39. A Constituição da República Portuguesa, na sua parte pertinente, dispõe:

ARTIGO 277.º

(Inconstitucionalidade por ação)

1. São inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

2. A inconstitucionalidade orgânica ou formal de tratados internacionais regularmente ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurídica da outra parte, salvo se tal inconstitucionalidade resultar de violação de uma disposição fundamental.

40. As disposições pertinentes do Código de Processo Civil, em vigor no momento dos factos, tinham o seguinte conteúdo:

Artigo 3.º

“(...)

3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

(...)

Artigo 201.º

“1 - Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”

Artigo 205.º

“(...)

1 - Quanto às outras nulidades, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o acto não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.

(...)”

Artigo 664.º

O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito

 

Artigo 122.º

“Nenhum juiz pode exercer as suas funções (...) :

(...)

e) Quando se trate de recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção como juiz de outro tribunal, quer proferindo a decisão recorrida, quer tomando de outro modo posição sobre questões suscitadas no recurso

(...).”

 

41. O artigo 52.º da Convenção coletiva de trabalho assinada entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol, publicada em 8 de Setembro de 1999, dispõe:

“1 — Sem prejuízo da extinção do vínculo contratual no âmbito das relações jurídico-laborais, a participação de um jogador em competições oficiais ao serviço de um clube terceiro na mesma época em que, por sua iniciativa, foi rescindido o contrato de trabalho desportivo depende do reconhecimento de justa causa da rescisão ou do acordo do clube (...)”

 

O DIREITO

42. A Requerente denuncia a violação do artigo 6.º § 1 da Convenção na vertente da equidade do processo, do acesso ao juiz e do prazo razoável.

I. SOBRE A ALEGADA VIOLAÇÃO DO ARTIGO 6.º § 1 DA CONVENÇÃO POR FALTA DE EQUIDADE DO PROCESSO

43. A Requerente queixa-se de falta de equidade do processo em várias vertentes. Denuncia assim, no âmbito do artigo 6.º da Convenção:

- a não notificação de certas peças, juntas ao processo;

- a decisão do caso com base em fundamentos suscitados oficiosamente e não debatidos pelas partes;

- a falta de imparcialidade da formação do Tribunal Constitucional.

Na parte pertinente, o artigo 6.º § 1 da Convenção está redigido como segue:

Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativamente (...) por um tribunal (...) imparcial,(...), o qual decidirá (...) sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil (...)”

44. O Governo contesta as posições da Requerente.

A. SOBRE A ADMISSIBILIDADE

45. O Tribunal verifica que os fundamentos da queixa não são manifestamente mal fundados no sentido do artigo 35.º, § 3, a), da Convenção, e que não se lhe depara, por outro lado, qualquer outro motivo de inadmissibilidade. Há assim lugar que declará-los admissíveis.

B. SOBRE O FUNDO

1. Sobre a ausência de notificação de alguns elementos do processo

46. A Requerente queixa-se, em primeiro lugar, de não ter sido notificada, por um lado, do despacho de 3 de maio de 2006 e, por outro, de uma resposta da parte contrária.

Quanto à não comunicação do despacho de 3 de maio de 2006, proferido pelo conselheiro relator no STJ, a Requerente alega:

- que, na medida em que suscitara, nas suas alegações, duas exceções, incidindo sobre a admissibilidade do recurso per saltum para o STJ – julgando o despacho, pelo contrario, o recurso admissível - tinha um óbvio interesse em que lhe tal despacho lhe fosse comunicado, a fim de o poder impugnar perante a Seção Social do STJ;

- que não se pode considerar que a referência indireta que foi feita a este despacho num parecer do Ministério Público tenha suprido validamente essa omissão.

Quanto à não comunicação da resposta da parte contrária à sua arguição de nulidade de 9 de Fevereiro de 2010, a Requerente entende que o STJ a privou da possibilidade de responder a todos os argumentos apresentados pela parte contrária, a fim de a influenciar a decisão do tribunal, o que constitui um direito de todo o interveniente processual.

47. O Governo reconhece que o despacho de 3 de Maio de 2006, do conselheiro relator do STJ, não foi notificado à Requerente e que, assim, esta ficou privada da possibilidade de o impugnar perante a formação colegial, o que, a priori, constituiria uma causa de nulidade.

Segundo o Governo, todavia, este potencial vício processual foi sanado em virtude de a Requerente ter sido notificada, em 5 de Setembro de 2006, de um parecer do MP em que este se referia expressamente à admissão, em 3 de Maio de 2006, do recurso per saltum para o STJ, sem que tivesse apresentado, no prazo de dez dias, uma reclamação por nulidade, como permitira o artigo 205.º n.º 1, do CPC.

48. O Governo reconhece igualmente que a resposta da parte contrária à arguição de nulidade, de 9 de Fevereiro de 2010, não foi notificada à requerente. Sustenta, ainda assim:

- que a Requerente não tinha a possibilidade legal de responder, de modo que a omissão da notificação não constituiu qualquer nulidade, nos termos do artigo 201.º do CPC;

- que, além do mais, a Requerente havia antecipado o conteúdo dessa peça processual, pois respondera, previamente, aos argumentos contrários sobre o assunto, nas suas observações já apresentadas.

49. O Tribunal recorda a sua jurisprudência constante segundo a qual a noção de processo equitativo implica, em princípio, o direito para as partes de tomarem conhecimento de qualquer peça ou observação apresentada ao juiz, com vista a influenciar a sua decisão, e de a debater (ver Lobo Machado c. Portugal, 20 de Fevereiro de 1996, par. 31, Coletânea dos Acórdãos e das Decisões 1996 – I; Vermeulen c. Bélgica, 20 de Fevereiro de 1996, par. 33, Coletânea 1996 – I; Nideröst-Huber c. Suíça, 18 de Fevereiro de 1997, pars. 23-24, Coletânea 1997 – I; e Novo e Silva c. Portugal, n.º 53615/08, par. 54, 25 de Setembro de 2012).

50. Este princípio vale para as observações e peças apresentadas pelas partes, mas também para aquelas que sejam apresentadas por um magistrado independente (como o comissário do Governo – hoje o “relator público” - Kress c. França [GC], n.º 39594/98, CEDH 2001 – VI), por uma administração terceira (Krcmar e outros c. República Checa, n.º 35376/97, 3 de Março de 2000) ou ainda pelo tribunal que proferiu a sentença impugnada (Nideröst-Huber, supracitado).

51. O Tribunal recorda que apenas às partes no litígio compete apreciar se um documento merece ou não comentários, pouco importando o efeito real das suas alegações na decisão do tribunal (Walston c. Noruega, n.º 37372/97, par. 58, 3 de Junho de 2003; e Ziegler c. Suíça, n.º 33499/96, par. 38, 21 de Fevereiro de 2012). Disto depende nomeadamente a confiança das pessoas no funcionamento da justiça: esta confiança alimenta-se, nomeadamente da segurança que resulta de se poderem exprimir sobre qualquer peça do processo (Nideröst-Huber, supracitado, pars. 27 e 29; H.A.L. c. Finlândia, n.º 38267/97, pars. 44-47, 7 de Julho de 2004; e Ferreira Alves c. Portugal (n.º 3), n.º 25053/05, par. 41, 21 de Junho de 2007).

52. O Tribunal recorda, contudo, que o direito a um processo contraditório não reveste carácter absoluto e que a sua extensão pode variar em função, nomeadamente das especificidades do processo em causa. Nalguns casos, em circunstâncias muito particulares, o Tribunal entendeu, por exemplo, que a não comunicação de uma peça processual e a impossibilidade de o Requerente a discutir não tinha ofendido o carater equitativo do processo, na medida em que o exercício desta faculdade em nada teria influenciado o resultado do litígio cuja solução jurídica a que se chegou não se prestava a discussão (Stepinska c. França, n.º 1814/02, par. 18, 15 de Junho de 2004; Salé c. França, n.º 39765/04, par. 19, 21 de Março de 2006; Verdú Verdú c. Espanha, n.º 43432/02, par. 28, 15 de Fevereiro de 2007, e Cepek c. República Checa, n.º 9815/10, par. 46, 5 de Setembro de 2013).

53. No presente caso, o Tribunal observa que a Requerente apenas em 5 de Setembro de 2006 pode tomar conhecimento do despacho de 3 de Maio de 2006, o que a colocou na impossibilidade de o impugnar perante a formação colegial do STJ. Ora, a questão da admissibilidade do recurso per saltum para a Seção Social do STJ podia efetivamente prestar-se a controvérsia. O Tribunal aceita, ainda assim, o argumento do Governo, segundo o qual esta falta foi suprida pelo facto de a Requerente, tendo tomado conhecimento deste despacho de 3 de Maio de 2006 através do parecer do MP de 5 de Setembro de 2006, não ter reagido a esse despacho no prazo de dez dias a contar da data em que a parte foi dele efetivamente informada.

54. Quanto à falta de notificação à Requerente da resposta da outra parte à arguição de nulidade de 9 de Fevereiro de 2010, o Tribunal nota, com o Governo, que a Requerente não tinha a possibilidade processual de apresentar resposta. O Tribunal releva, aliás, que a interessada não conseguiu demonstrar que poderia ter trazido, em resposta, elementos novos e pertinentes para o exame da causa. O Tribunal observa, com efeito, que a Requerente tinha já antecipado o conteúdo dessa resposta, na medida em que as suas peças escritas juntas ao processo incluíam antecipadamente elementos potencialmente úteis a esse respeito. Por conseguinte, a falta de comunicação desta peça processual apresentada pela parte contrária não teve qualquer incidência no resultado da lide.

55. O Tribunal entende, por estas razões, que não ocorreu violação do artigo 6.º § 1 da Convenção na parte referente à falta de notificação da junção aos autos das duas peças supra referidas.

2. Sobre a falta de comunicação às partes dos fundamentos suscitados oficiosamente

56. A Requerente censura o STJ por ter baseado o seu acórdão de 7 de Março de 2007 num fundamento suscitado oficiosamente, sem lho ter comunicado previamente e de a ter privado, assim, da possibilidade de formular as suas observações sobre a questão.

57. O Governo opõe-se a esta tese. Tendo em conta a extensão dos fundamentos de inconstitucionalidade suscitados pela parte contrária, entende que o facto de o STJ ter apreciado a inconstitucionalidade ao nível da competência e não da violação substantiva de uma disposição da Constituição, não apanhou a Requerente de surpresa.

58. O Tribunal recorda que o próprio juiz está vinculado a respeitar o princípio do contraditório, nomeadamente quando resolve um litígio com base num fundamento ou numa exceção suscitados oficiosamente (ver, mutatis mutandis, Skondrianos c. Grécia, n.º 63000/00, 7429101 e 7429201, §§ 29-30, 18 de Dezembro de 2003; Clinique des Acacias e outros c. França, n.ºs 65399/01, 65406/01, 65405/01 e 65407/01, § 38, 13 de Outubro de 2005; Prikyan e Angelova c. Bulgária, n.º 44624/98, § 42, 16 de Fevereiro de 2006; Amirov c. Arménia (dec.), n.º 25512/06, 18 de Janeiro de 2011; e Cepek, supracitado, § 45).

59. A este respeito, o Tribunal recorda que o elemento determinante é a questão de saber se a Requerente foi “apanhada de surpresa” pelo facto de o tribunal ter baseado a sua decisão num fundamento relevado oficiosamente (Villnow c. Bélgica (dec.), n.º 16938/05, 29 de Janeiro de 2008; e Clinique des Acacias e outros, supracitado, § 43). Impõe-se ao tribunal uma diligência particular quando o litígio segue um caminho inesperado, tanto mais quando se trata de uma questão deixada à sua discrição. O princípio do contraditório impõe que os tribunais não fundamentem as suas decisões em elementos de facto ou de direito que não tenham sido debatidos durante o processo e que confiram ao litígio uma direção que mesmo uma parte diligente não estaria em condição de antecipar (Cepek, supracitado, § 48).

60. No caso, o STJ fez uso do seu incontestado direito de relevar oficiosamente um fundamento de direito, como lhe permitia o artigo 664.º do CPC, para declarar uma inconstitucionalidade orgânica (isto é, atinente à competência). O único problema reside na não comunicação desta intenção à Requerente.

61. O Tribunal verifica que, quando o STJ encarou a possibilidade de substituição dos fundamentos, a Requerente não foi disso devidamente informada. Esta não pôde, assim, apresentar, em resposta, observações complementares (ver, a contrario, Andret e outros c. França (dec.), n.º 1956/02, 25 de Maio de 2004).

Para o Governo, a circunstância de o fundamento relevado não ter sido sujeito ao contraditório pode justificar-se pelo facto de este já fazer parte do debate, dada a amplitude da questão de inconstitucionalidade suscitada.

O Tribunal observa que a questão da inconstitucionalidade em razão da competência (inconstitucionalidade “orgânica”) nunca tinha sido discutida no decurso do processo antes do acórdão de 7 de Março de 2007. O Tribunal considera, assim, que, mesmo se um advogado avisado pudesse encarar a possibilidade de o STJ decidir o caso sob este ângulo, podia legitimamente esperar, em tal caso, ser explicitamente convidado a tomar posição sobre esse ponto, nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do CPC; e isto tanto mais quando, como no caso, o objeto do litígio não era negligenciável e a questão podia prestar-se a controvérsia (Clinique des Acacias e outros, supracitado, § 41).

62. Neste quadro, é forçoso concluir que a falta de notificação da Requerente sobre a substituição dos fundamentos pelo STJ a “apanhou de surpresa” (Clinique des Acacias e outros, supracitado, § 43). Verificou-se assim, nesta parte, a violação do artigo 6.º § 1 da Convenção.

3. Sobre a falta invocada de imparcialidade da formação do TC

63. A Requerente invoca que o juiz C.A.F.C. fizera parte da formação do Tribunal Constitucional que confirmou o acórdão do STJ de 12 de Julho de 2007. Salienta:

- que o acórdão assim confirmado não era mais do que a confirmação do acórdão do STJ de 7 de Março de 2007, subscrito pelo juiz C.A.F.C;

- que o papel do juiz C.A.F.C. no TC foi primordial, uma vez que determinou o sentido de voto da formação de julgamento da qual era, de resto, o relator.

64. O Governo contesta estas invocações. Recorda que o juiz C.A.F.C. não interveio no acórdão do STJ de 12 de Julho de 2007 e esclarece que, além do mais, as questões analisadas pelo juiz C.A.F.C. em cada uma das suas intervenções eram perfeitamente distintas, na medida em que:

- no STJ, o acórdão de 7 de Março de 2007 pronunciou-se sobre o fundo da questão;

- no TC, o recurso de constitucionalidade respeitava apenas à eventual violação do princípio do contraditório, visto o STJ ter relevado uma inconstitucionalidade atinente à competência e não uma inconstitucionalidade material.

65. O Tribunal recorda que a imparcialidade no sentido do artigo 6.º §1 da Convenção se analisa segundo uma dupla “démarche”: o primeiro passo consiste em procurar determinar a convicção pessoal deste ou daquele juiz em determinada ocasião; o segundo consiste em se assegurar que o mesmo oferecia garantias bastantes para excluir qualquer dúvida legítima a este respeito (Gautrin e outros c. França, 20 de Maio de 1998, § 58, Coletânea 1998 – III).

66. Quanto à primeira “démarche”, a imparcialidade pessoal de um magistrado presume-se até prova em contrário (ver, por exemplo, Padovani c. Itália, 26 de Fevereiro de 1993, § 26, Série A, n.º 257-B).

67. A segunda conduz a questionar, sempre que está em causa um tribunal coletivo, se alguns factos verificáveis permitem pôr em causa a imparcialidade desta formação, independentemente da atitude pessoal deste ou daquele dos seus membros. Nesta matéria, mesmo as aparências podem revestir importância. Resulta daí que, para se pronunciar sobre a existência, num caso determinado, de uma razão legítima para temer da falta de imparcialidade de um tribunal, o ponto de vista do interessado entra em linha de conta, sem desempenhar contudo um papel decisivo. O elemento de terminante consiste em saber se as apreensões deste podem ter-se por objetivamente justificadas (Gautrin e outros, supracitado).

68. A questão que se levanta é, assim, a de saber se, tendo em conta a natureza e a extensão do controlo judicial anteriormente confiado ao STJ no âmbito do recurso interposto do acórdão sobre o mérito, a composição da formação de julgamento do TC pôde legitimamente fazer temer um “parti pris”, da parte deste, quanto à decisão a proferir em seguida, aquando do recurso de constitucionalidade.

69. Para se pronunciar sobre a existência de uma razão legítima para duvidar da imparcialidade de um tribunal, o ponto essencial é saber se as questões que os juízes tiveram que tratar aquando do segundo exame da causa eram análogas àquelas que tinham tido que examinar aquando do primeiro (ver mutatis mutandis, Saraiva de Carvalho c. Portugal, 22 de Abril de 1994, § 38, série A, n.º 286-B; e Morel c. France, n.º 34130/96, §47, CEDH 2000-VI). Para que um pré-juízo se tenha podido criar, é necessário, por um lado, uma identidade dos factos que o juiz em causa tenha tido que conhecer sucessivamente e, por outro, que este tenha tido que responder à mesma questão ou, pelo menos, que a diferença entre as questões que tenha tido que decidir seja ínfima (Hauschildt c. Duinamarca, 24 de Maio de 1989, § 52, Séria A, n.º 154).

70. O Tribunal já concluiu pela violação do direito a um tribunal imparcial num determinado número de casos, tomando em consideração tanto a elevada proporção de magistrados intervenientes, como as funções de presidente ou de relator, exercidas por estes no seio do coletivo (Castillo Algar c. Espanha, 28 de Outubro de 1998, §§ 41 a 53, Coletânea 1998 – VIII; Perote Pellon c. Espanha, n.º 45238/99, § 50, in fine, 25 de Julho de 2002, Olujic c. Croácia, n.º 22330/05, § 67, 5 de Fevereiro de 2009; e Cardona Serrat c. Espanha, n.º 38715/06, § 37, 26 de Outubro de 2010).

71. No caso, o Tribunal observa que um dos cinco membros da formação de julgamento do TC, o juiz C.A.F.C., já tinha decidido sobre o caso da Requerente no seio da Seção Social do STJ. Como o Governo reconheceu, o Tribunal nota igualmente que o referido juiz interveio na qualidade “de segundo relator”, em substituição do relator inicial, visto o projeto por este apresentado não ter sido aprovado pela 3.ª Seção do TC (parágrafo 23, supra).

72. Quanto às questões que os juízes decidiram, o Tribunal releva que as questões colocadas, em cada um dos tribunais em causa, se apresentavam pela seguinte forma:

- primeiro, a seção social do STJ tinha-se pronunciado sobre a validade de certas cláusulas de uma convenção coletiva assinada pela Requerente e tinha, nomeadamente, relevado a este respeito a violação das normas constitucionais que estabelecem a competência exclusiva da Assembleia da República (sobre “reserva de lei”);

- seguidamente, o TC foi chamado a decidir se a falta de audição da Requerente sobre este último ponto tinha violado o princípio do contraditório.

73. O Tribunal recorda que a compatibilidade da participação de um mesmo juiz nos diferentes estádios de decisão de um processo civil com a exigência de imparcialidade enunciada no artigo 6.º § 1 deve apreciar-se casuisticamente, em função das circunstâncias de cada caso.

No presente caso, apesar do número reduzido de juízes em causa (um em cinco), mas tendo em conta, por um lado, que o juiz em questão era o relator do TC e, por outro, a estreita relação entre as questões decididas pelos dois tribunais, o Tribunal entende que se justificam objetivamente as dúvidas da Requerente acerca da imparcialidade da formação do TC.

74. Assim sendo, o Tribunal entende que, no caso, houve violação do artigo 6.º § 1 da Convenção, em razão da falta de imparcialidade da formação de julgamento do Tribunal Constitucional.

II. A INVOCADA VIOLAÇÃO DO ARTIGO 6.º § 1 DA CONVENÇÂO NA PERSPETIVA DO ACESSO A UM TRIBUNAL

75. A Requerente entende que a cobrança de custas judiciais excessivas pelo TC deve ser considerada como uma violação do direito de acesso a um tribunal. Expõe:

-que as decisões sobre os montantes não foram suficientemente fundamentadas;

-que os montantes fixados foram desproporcionais;

-que a finalidade prosseguida, a saber, dissuadir os cidadãos de se dirigirem ao TC, foi ilegítima.

76. O Governo contesta estas afirmações. Recorda que as custas judiciais são pagas pela parte cujas pretensões foram rejeitadas, e que o seu montante é determinado tendo em conta a complexidade do caso, o seu objeto e a conduta da parte. A seu ver, o montante das custas no TC apenas reflete a conduta processual da Requerente e não é nem desproporcionado, nem, de qualquer outro modo, excessivo.

77. O Tribunal releva que este fundamento de queixa está associado aos anteriormente examinados e entende que deve, assim, ser admitido.

78. O artigo 6.º § 1 garante a todos o direito a que um tribunal conheça de toda a contestação relativa aos seus direitos e obrigações de natureza civil. Consagra, assim, o “direito a um tribunal”, cujo direito de acesso, ou seja, o de se dirigir a um tribunal em matéria civil, é apenas um aspeto. O “direito a um tribunal” não é, contudo, absoluto e, pela sua natureza, apela a uma regulamentação do Estado. Se os Estados contratantes gozam de uma certa margem de apreciação na matéria, cabe ao Tribunal decidir em último recurso sobre o respeito das exigências da Convenção (ver Golder c. Reino-Unido, 21 de Fevereiro de 1975, Série A, n.º 18, §§ 34 in fine e 35-36; Z e outros c. Reino-Unido [GC], n.º 29392/95, §§ 91-93, CEDH 2001-V; e Stankov c. Bulgária, n.º 68490/01, § 50, 12 de Julho de 2007).

79. O Tribunal recorda que a obrigação que pode incidir sobre os intervenientes perante as jurisdições cíveis de pagarem custas relativas aos pedidos que estas devem conhecer, não pode passar por uma restrição ao direito de acesso a um tribunal incompatível em si com o artigo 6.º § 1 da Convenção. Todavia, o montante das custas, apreciado á luz das circunstâncias particulares de um determinado caso, é um fator a ter em conta para determinar se o interessado beneficiou do seu direito de acesso (Tolstoy-Miloslasky c. Reino-Unido, 13 de Julho de 1995, §§ 61 e segs., Série A, n.º 316-B; Brualla Gómez de la Torre c. Espanha, 19 de Dezembro de 1997, § 33, Coletânea 1997 – VIII; e Kreuz c. Polónia, n.º 28249/95, § 60, CEDH 2001-VI).

80. O Tribunal recorda, de resto, que, se o artigo 6.º § 1 obriga os tribunais a fundamentarem as suas decisões, a extensão deste dever pode variar segundo a natureza da decisão, e deve analisar-se à luz das circunstâncias específicas de cada caso (Ruiz Torija c. Espanha, 9 de Dezembro de 1994, § 29, Série A, n.º 303-A).

81. No caso, o Tribunal verifica que os tribunais internos rejeitaram as pretensões da Requerente. Contrariamente a outros casos trazidos perante o Tribunal, nos quais estava em causa o carácter excessivo de certas custas processuais – em que, por não poderem pagar as custas em questão, os Requerentes não tinham tido acesso a um tribunal ou a determinada via de recurso (ver entre muitos outros, Weissman e outros c. Roménia, n.º 63945/00, § 42, CEDH 2006 – VII (excertos); e Teltronic-CATV c. Polónia, n.º 48140/99, 10 de Janeiros de 2006) - no presente caso, o pagamento das custas exigíveis não constituía condição prévia ao exame do recurso exercido pela interessada. A Requerente sempre teve “acesso” a todas as fases do processo e os tribunais a que se dirigiu decidiram sempre quanto ao fundo sobre os seus pedidos, por meio de decisões vinculativas. O montante das custas judiciais no TC foi determinado no termo do processo e o seu pagamento apenas foi exigido depois de as decisões proferidas neste processo terem adquirido a vinculatividade própria do caso julgado (Stankov, supracitado, § 53).

Além do mais, nada demonstra, no caso, uma particular situação de vulnerabilidade financeira por parte da Requerente.

Quanto às normas relativas às custas judiciais, o Tribunal releva, por fim, que a finalidade de desencorajar ações frívolas pode inscrever-se na preocupação de uma boa administração da justiça.

82. Pelo exposto, o Tribunal entende que não houve violação do artigo 6.º § 1 da Convenção na perspetiva da falta de acesso a um tribunal.

 

III. SOBRE A ALEGADA VIOLAÇÃO DO ARTIGO 6.º § 1 DA CONVENÇÃO REFERENTE À DURAÇÃO DO PROCESSO

83. A Requerente alega que a demora do processo contrariou o princípio do “prazo razoável” tal como previsto no artigo 6.º § 1 da Convenção, assim redigido:

      “ Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, (...) num prazo razoável por um tribunal (...), o qual decidirá (...) sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil (...)”

84. O Tribunal constata que o presente fundamento de queixa não é manifestamente infundado no sentido do artigo 35.º § 3 a) da Convenção e que não se confronta, de resto, com nenhum outro motivo de não admissibilidade. Há, assim, que o declarar admissível.

A. O PERIODO A TER EM CONSIDERAÇÃO

85. A requerente conta a duração do processo a partir de 25 de Março de 2002, data em que foi instaurada a ação de declaração de nulidade contra si.

86. O Governo não apresenta observações sobre este ponto.

87. O Tribunal recorda que o “prazo razoável” previsto pelo artigo 86.º § 1 da Convenção tem geralmente por ponto de partida, em matéria cível, a instauração da ação (Deumeland c. Alemanha, 29 de Maio de 1986, § 77, Série A, n.º 100).

88. Tratando-se no entanto de uma Requerente que era ré no litígio – no caso, a ação de nulidade - o ponto de partida a tomar em conta é a data em que foi notificada para contestar esta ação, ou seja o dia 15 de Maio de 2002 ( Alves Ferreira c. Portugal, n.º 30358708, § 33, 27 de Maio de 2010). Tendo terminado em 15 de Dezembro de 2011, o processo demorou assim, nove anos e sete meses em três degraus de jurisdição.

 

B. O CARÁTER RAZOÁVEL DA DURAÇÃO DO PROCESSO

89. O Governo reconhece que, à primeira vista, a duração do processo pode parecer excessiva, tendo em conta, nomeadamente as datas da sentença de primeira instância e do primeiro acórdão do TC. Mas entende que a Requerente contribuiu em muito para o seu prolongamento. Sublinha assim:

- que a Requerente apresentou várias reclamações por nulidade e outros pedidos com vista a evitar o trânsito em julgado do acórdão de 7 de Março de 2007, do STJ;

-que, por meio de uma conduta semelhante, levou o TC a proferir seis acórdãos e três decisões no âmbito do processo.

90. O Tribunal recorda que o carácter razoável da duração de um processo se aprecia segundo as circunstâncias da causa e tendo em conta os critérios consagrados pela sua jurisprudência, em particular a complexidade do caso, o comportamento dos requerentes e das autoridades competentes, bem como o objeto e a importância do litígio para os interessados (ver, entre muitos outros, Frydlender c. França [GC], n.º 30979/96, § 43, CEDH 2000-VII).

91. O Tribunal recorda que apenas a lentidão imputável ao Estado pode levar a concluir pela inobservância do “prazo razoável” (ver H. c. França, 24 de Outubro de 1989, § 55, Série A, n.º 162; Proszack c. Polónia, 16 de Dezembro de 1997, § 40, Coletânea 1997- VIII; e Humen c. Polónia [GC], n.º 26614/95, § 66, 15 de Outubro de 1999).

92. No caso, o Tribunal entende que o processo representava uma particular complexidade, tendo também em conta os recursos e os pedidos de declaração de nulidade apresentados. Constata a este respeito, com o Governo, que o TC proferiu seis acórdãos no âmbito do processo.

93. Relativamente ao comportamento da Requerente, o Tribunal entende, em primeiro lugar, que não se lhe pode censurar o facto de ter feito uso dos diversos recursos e outras possibilidades processuais que o direito interno lhe conferia. No entanto, o seu comportamento constitui um elemento objetivo, não imputável ao Estado requerido, que entra em linha de conta para determinar se foi ou não ultrapassado o prazo razoável do artigo 6.º § 1 (Wiesinger c. Áustria, 30 de Outubro de 1991, § 57, Série A, n.º 213, Erkner e Hofauer c. Áustria, 23 de Abril de 1987, § 68, Série A, n.º 117; e Castro Ferreira Leite c. Portugal, n.º 19881/06, § 43, 1 de Dezembro de 2009).

94. O Tribunal verifica que, no conjunto dos três graus de jurisdição, a Requerente apresentou não menos de:

- três recursos de inconstitucionalidade;

- três pedidos de nulidade contra decisões e acórdãos proferidos;

- quatro reclamações de revisão destas decisões;

- três reclamações diversas incidindo nomeadamente sobre taxas de justiça e competência dos tribunais.

No caso, é, assim, forçoso concluir que o comportamento da Requerente provocou efetivamente um certo prolongamento do processo (Castro Ferreira Leite, supracitado, § 43).

95. Relativamente à eficiência dos tribunais, o Tribunal verifica períodos de lentidão imputáveis às autoridades nacionais. Assim, a demora foi de:

- 3 anos e 6 meses para a sentença do tribunal de trabalho de Lisboa;

- 1 ano e 4 meses para o despacho do TC de 24 de Novembro de 2008 e, a seguir, 1 ano e dois meses para o primeiro acórdão do TC.

O Tribunal recorda, a este respeito, que o artigo 6.º § 1 da Convenção obriga os Estados contratantes a organizar o seu sistema judicial de modo a que os tribunais possam satisfazer cada uma das suas exigências, nelas incluída a de decidir as causas dentro de prazos razoáveis (ver entre muitos outros, Duclos c. França, 17 de Dezembro de 1996, § 55 in fine, Coletânea 1996-VI; e Pélissier e Sassi c. França [GC], n.º 25444/94, § 74, CEDH 1999 – II). No caso, o processo revela atrasos excessivos, que são imputáveis às autoridades nacionais.

96. Nestes termos, o Tribunal conclui pela violação do artigo 6.º § 1 da Convenção em razão da duração excessiva do processo.

 

  1. SOBRE A APLICAÇÃO DO ARTIGO 41.º DA CONVENÇÃO

97. Nos termos do artigo 41.º da Convenção,

“Se o Tribunal declarar que houve violação da Convenção ou dos seus protocolos e se o direito interno da Alta Parte Contratante não permitir senão imperfeitamente obviar às consequências de tal violação, o Tribunal atribuirá à parte lesada, uma reparação razoável, se necessário”.

  1. DANO

98. A Requerente reclama os valores seguintes:

-40 000 EUR a título do prejuízo material que teria sofrido em razão da violação do seu direito a um processo equitativo;

-15 000 EUR pelo prejuízo moral.

99. O Governo contesta estas pretensões, não vislumbrando qualquer nexo de causalidade entre os prejuízos alegados e as violações constatadas.

100. O Tribunal nota que, no caso, a única base para a concessão de uma satisfação equitativa a título do prejuízo material reside no facto de a Requerente não ter beneficiado das garantias de um processo equitativo no sentido do artigo 6.º § 1 da Convenção.

Ora o Tribunal entende que não se pode especular sobre o resultado ao qual teria chegado o processo diante do STJ e do TC se as violações da Convenção não tivessem ocorrido. Não há, assim, que conceder uma indemnização à Requerente a título do dano material.

Quanto ao dano moral, o Tribunal entende que a Requerente sofreu certamente agravos decorrentes da falta de equidade e da demora do processo. Recorda a este respeito que a possibilidade de sofrer um dano moral que merece reparação não respeita unicamente às pessoas singulares (Partido da Liberdade e da Democracia (ÖZDEP) c. Turquia [GC], n.º 23885/94, § 57, CEDH 1999 – VIII; e Comingersoll S.A. c. Portugal [GC], n.º 35382/97, § 35, CEDH 2000-IV). Decidindo por equidade, considera adequado conceder 3 750 EUR a este título à Requerente.

 

 

  1. CUSTAS E DESPESAS

101. A Requerente pede ainda 8 000 EUR pelas custas e despesas diante das jurisdições internas e 5 500 EUR pelas custas e despesas diante do Tribunal.

102. O Governo opõe-se a estas pretensões.

103. Segundo a jurisprudência do tribunal, um Requerente apenas pode obter o reembolso das custas e despesas na medida em que a sua realidade, a sua necessidade e o carácter razoável da sua taxa se encontrem estabelecidas. No caso, tendo em conta os documentos de que dispõe e a sua jurisprudência, o Tribunal entende ser razoável conceder a soma de 4 000 EUR à Requerente para todas as despesas.

  1. JUROS DE MORA

104. O Tribunal entende ser apropriado calcular a taxa dos juros de mora sobre a da facilidade de empréstimo marginal do Banco central Europeu acrescido de três pontos percentuais.

 

Por estes fundamentos, o Tribunal:

  1. Declara, por unanimidade, a queixa admissível;
  2. Diz, por unanimidade que não houve violação do artigo 6.º § 1 da Convenção no que respeita à falta de comunicação de certas peças do processo à Requerente;
  3. Diz, por cinco votos contra dois, que houve violação do artigo 6.º § 1 pelo facto de o caso ter sido decidido com base em fundamentos não submetidos ao debate das partes;
  4. Diz, por unanimidade, que houve violação do artigo 6.º § 1 devido à falta de imparcialidade da formação de julgamento do TC;
  5. Diz, por unanimidade, que não houve violação do artigo 6.º § 1 na vertente da falta de acesso a um tribunal;
  6. Diz, por unanimidade, que houve violação do artigo 6.º § 1 da Convenção na vertente da duração excessiva do processo;
  7. Diz, por unanimidade;

 

a) que o Estado requerido deve pagar à Requerente, nos três meses a contar do dia em que este Acórdão se torne definitivo, nos termos do artigo 44.º § 2 da Convenção, os valores seguintes:

i) 3750 EUR (três mil setecentos e cinquenta Euros), acrescido de qualquer montante que possa ser devido a título de imposto, pelo dano moral;

ii) 4000 EUR (quatro mil Euros), acrescido de qualquer montante que possa ser devido pela Requerente a título de imposto, pelas custas e despesas;

b) que a contar da expiração desse prazo e até pagamento, estes montantes serão acrescidos de uma taxa de juro simples em percentagem igual à da facilidade marginal de empréstimo do BCE aplicável durante este período, acrescida de três pontos;

    8. Rejeita, por unanimidade, o pedido de satisfação equitativa na parte excedente.

 Feito em francês e comunicado por escrito em 17 de Maio de 2016, em aplicação do artigo 77 §§ 2 e 3 do Regulamento do Tribunal.

 

Marialena Tsirli                               András Sajó

Secretária                                   Presidente

Ao presente Acórdão encontra-se junta, nos termos dos artigos 45.º § 2 da Convenção e 74§ 2 do Regulamento, a exposição das opiniões separadas dos juízes Wojtyczek e Motoc.

 

OPINIÃO EM PARTE DISSIDENTE DO JUIZ WOJTYCZEK

1. Para a maioria, no presente caso, houve violação do artigo 6.º § 1 da Convenção de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais em razão de o caso ter sido decidido com base em fundamentos não submetidos ao debate das partes. Não estou de acordo com este ponto do dispositivo.

2. O presente caso levanta um problema crucial relativo ao modelo de processo civil nos Estados partes na Convenção de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Trata-se da extensão da obrigação do juiz cível submeter questões de direito a debate contraditório.

O processo civil, em muitos sistemas jurídicos, assenta em dois princípios fundamentais: da mihi facti, dabo tibi ius e jura novit curia (ver a minha opinião dissidente no caso Alexe c. Roménia, n.º 66522/09, 3 de Maio de 2016). A finalidade imediata do processo civil é a de estabelecer os factos pertinentes de modo a permitir ao juiz a aplicação da regra de direito geral ao caso concreto e de extrair daí as consequências individuais. O juiz deve tomar a sua decisão assentando nas provas debatidas pelas duas partes.

Em princípio, o processo civil não tem por finalidade estabelecer o conteúdo das regras jurídicas aplicáveis. No entanto, as partes podem sempre desenvolver uma argumentação com vista a defender uma interpretação do direito favorável aos seus interesses.

Há também que sublinhar aqui as obrigações dos advogados que representam as partes. Estes têm o dever, nomeadamente de aconselhar as partes sobre as questões de direito, de apresentar as provas que permitem estabelecer os elementos de facto pertinentes e, sendo caso disso, de desenvolver os argumentos sobre o ou os aspetos jurídicos em causa.

Ao mesmo tempo, há que notar que os factos pertinentes são estabelecidos em função das regras jurídicas aplicáveis. As controvérsias sobre questões de direito podem assim ter consequências diretas na identificação dos elementos factuais pertinentes a estabelecer. A determinação do direito aplicável pode ter incidência sobre as provas que as partes devem apresentar para estabelecer os factos pertinentes.

As partes no processo civil elaboram a sua estratégia em função do direito aplicável para estabelecer os elementos de facto pertinentes sobre os quais as suas pretensões repousam. O juiz não deve surpreender as partes com a aplicação de uma regra de direito que não foi por estas invocada se, à luz dessa regra, deverem ser fixados elementos de facto diversos daqueles que foram tomados em conta pelas partes.

3. A maioria cita um determinado número de acórdãos do Tribunal que entende serem pertinentes para o presente caso. Há que dizer, desde já, que um certo número de entre eles são relativos ao processo penal, que é muito diferente do processo civil. Os princípios de justiça processual definidos pelo Tribunal para as necessidades do processo penal não são diretamente transponíveis para o processo civil. Convém, assim, fazer unicamente referência aos acórdãos relativos a este último.

Entre os acórdãos relativos à questão do debate contraditório em processo civil, há que citar aqui em primeiro lugar os acórdãos Clinique des Acacias et autres c. France (n.ºs 65399/01, 56406/01, 65405/01 e 65407/01, de 13 de Outubro de 2005) e Cepek c. República Checa (n.º 9815/10, 5 de Setembro de 2013). Infelizmente, a motivação destes acórdãos, como a de outros acórdãos relativos ao princípio do contraditório em processo civil, não é suficientemente clara nem precisa, o que pode suscitar mal entendidos e induzir em erro tanto as autoridades nacionais quanto os cidadãos.

Segundo a jurisprudência do Tribunal, o elemento determinante é, assim, a questão de saber se uma parte foi “tomada de surpresa” pelo facto de o tribunal ter fundado a sua decisão com base num motivo oficiosamente invocado (Clinique des Acacias c. France, supracitado, § 43). A meu ver, a questão de saber se as partes foram tomadas de surpresa deve apreciar-se no contexto da dinâmica do processo civil: trata-se de determinar se foram “apanhadas” de surpresa no quadro da sua estratégia processual. Por outras palavras, o juiz, pela sua atitude, surpreende as partes ao invocar uma regra jurídica à luz da qual se torna necessário fixar como factos pertinentes elementos factuais em que as partes não tinham pensado anteriormente.

Esta abordagem foi confirmada pelo acórdão proferido no caso Cepek c. República Checa (supracitado, § 48). Neste caso, as partes foram tomadas de surpresa pela aplicação da regra que permitia, de modo excecional, repartir as custas do processo civil entre as duas partes, limitando assim as obrigações da parte vencida. O requerente ficou assim privado da possibilidade de estabelecer certos factos pertinentes e de se pronunciar sobre factos que justificavam uma repartição dos encargos entre as duas partes.

 

4. No presente caso, uma das partes tinha impugnado a constitucionalidade de certas cláusulas de uma convenção coletiva de trabalho, alegando que infringiam a liberdade de trabalho garantida pelos artigos 47.º e 48.º da Constituição. O Tribunal de Trabalho de Lisboa considerou que o artigo 52.º § 1 da Convenção coletiva não contrariava o direito ao trabalho do jogador e que esta cláusula não era incompatível com os artigos 47.º e 48.º da Constituição. O STJ, no seu acórdão de 7 de Março de 2007, entendeu que o direito à livre escolha de uma profissão e o direito de a exercer eram da competência exclusiva do legislador e que esta cláusula relevava da competência da Assembleia da República. Para decidir se o artigo 52.º § 1 da Convenção coletiva era da competência do Parlamento, o STJ teve de examinar o seu conteúdo.

Constato assim que a questão da constitucionalidade do artigo 52.º § 1 da Convenção coletiva constituíao objeto do debate entre as partes. Nos termos do artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa:

 “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Um texto que limita os direitos constitucionais deve respeitar, em particular, a repartição das competências entre o poder regulamentar e o poder legislativo, o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais e o princípio da proporcionalidade. Para decidir se uma disposição infra legal infringe ou não uma liberdade constitucional, impõe-se, assim, em primeiro lugar, verificar se esta disposição é compatível com a reserva de lei (competência exclusiva do legislador). A questão referente ao respeito desta competência do legislador constitui não apenas um dos aspetos essenciais da constitucionalidade dos textos que respeitam aos direitos constitucionais mas também aquele que deve ser examinado em primeiro lugar. Um exame de proporcionalidade apenas é necessário nos casos em que a limitação examinada tem um fundamento legislativo. Se um tribunal procede ao controlo da proporcionalidade de um texto normativo, este controlo assenta, em princípio, no pressuposto implícito do respeito da competência do legislador.

Deste modo, é difícil admitir que o exame da questão do respeito da reserva de lei fosse suscetível de surpreender as partes, que, para mais, estavam representadas por profissionais. Este controlo impunha-se como uma evidência. Por outro lado não se vê de que forma a decisão de controlar esta vertente da constitucionalidade da cláusula impugnada possa ter afetado a estratégia processual da Requerente. De todo o modo, não teve qualquer influência sobre os elementos factuais a fixar.

5. No caso presente, há que evidenciar uma disposição importante do direito nacional. Segundo o artigo 3. n.º 3 do CPC,

“O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

É possível que esta disposição do direito português, tal como interpretada pelos tribunais superiores tenha sido violada, no caso. Todavia, esta obrigação vai bem além das exigências do artigo 6.º da Convenção. Em muitos sistemas jurídicos, uma tal obrigação não está prevista no direito processual.

6. A abordagem adotada pela maioria, consistindo em reconhecer um campo de aplicação muito vasto ao princípio do contraditório, conduz a obrigar o juiz a consultar as partes sobre todos os aspetos de direito que possam prestar-se a controvérsia no seu projeto de acórdão. Esta exigência perturba, sem imperiosa necessidade, as tradições jurídicas de muitas da Altas Partes Contratantes, sem trazer um valor acrescentado bastante para a proteção dos direitos humanos.

 

 

OPINIÃO EM PARTE DISSIDENTE DA JUIZA MOTOC

1. Estou em desacordo com o Tribunal no que respeita à violação do artigo 6.º § 1 relativamente ao não respeito do princípio do contraditório no caso. Na minha opinião, este caso levanta uma questão essencial perante o Tribunal, a saber, a dos limites da abordagem que a doutrina apelida de “ativismo jurídico” do Tribunal, bem como a questão da margem de apreciação e do diálogo com os juízes nacionais. Será que este tipo de raciocínio do Tribunal, que reduz a margem de apreciação a um nível próximo do zero, contribui para tornar o nosso Tribunal mais efetivo? Será que, com este tipo de abordagem, a expressão “ativismo jurídico” não corre o perigo de se apagar como o nome do homem na areia, na metáfora empregue por Michel Foucault em “Les mots et les choses” para descrever o fim do humanismo?

2. O Tribunal entende que o princípio do contraditório não foi respeitado neste processo: para proceder assim, infirma duas das decisões das mais altas instância portuguesas, a do STJ e a do TC. Este último havia dito: ”um processo equitativo postula a efetividade do direito de defesa por aplicação das garantias do contraditório e da igualdade de armas, mas não necessariamente um direito de participação ativa no processo em termos tais que qualquer solução que venha a ser adotada pelo juiz deva ter sido antes debatida pelas partes em todos os seus possíveis contornos e se torne sempre numa solução previsível (...) pelo que só quando se conjeture uma nova questão de direito ou um diferente enquadramento jurídico com que as partes não pudessem razoavelmente contar é que poderia configurar-se com nitidez uma violação do princípio da proibição da decisão surpresa» (acórdão de 13/01/2010). O STJ que foi contrariado por esta decisão tinha dito: “a violação dos preceitos constitucionais tanto pode decorrer de inconstitucionalidade material como de uma inconstitucionalidade em razão da competência (...) ou de uma inconstitucionalidade formal. No caso em apreço, o Autor não invocou nenhum daqueles vícios em particular e assim entendemos que a questão por ele suscitada era suscetível de abarcar aquelas três vertentes de inconstitucionalidade”. O Tribunal contradiz, por conseguinte, os dois tribunais portugueses sobre a questão sobre a qual a queixa inicial incidia. Em conformidade com o seu conhecido aforismo, o Tribunal releva que as jurisdições internas chegaram a uma conclusão clara sobre esta questão depois de um exame atento do conjunto de meios apresentados perante elas. Recorda, em consonância com a sua jurisprudência constante, que não cabe nas suas competências substituir a sua própria apreciação à das jurisdições internas (Elshoz c. Alemanha [GC], n.º 25735/94, § 66, CEDH 2000-VIII).

3. Para mais, o acórdão contém uma contradição. Por uma parte, não aceita a motivação do juiz Carlos Alberto Fernandes Cadilha que alega que as duas coisas são diferentes, mas contradi-lo quando entende que elas são semelhantes.

4. As razões que levam os Estados a ratificar os Tratados internacionais relativos aos direitos humanos, permanecem inexplicadas na ciência política. Numerosas explicações provisórias para os modelos de compromisso verificados foram apresentadas, relativas, por exemplo, à natureza do regime político do Estado (ver, por exemplo, os trabalhos de Andrew Moravcsik (The Origins of Human Rights Regimes; Democratic Delegation in Postwar Europe, 2000), ou às características de um Tratado e ao modo como divergem das práticas de um país (Oona A. Hathaway, Why Do Countries Commit to Human Rights Treaties, 2007), e aos objetivos da política externa de um país (Ryan Goodman, Human Rights Treaties, Invalid Reservations, and State Consent, 2000); daí os dilemas sobre a eficácia de um Tratado.

É certo que este tipo de acórdão não contribui para a eficácia da nossa Convenção nem para o “ativismo jurídico” do Tribunal.