Tribunal Europeu dos Direitos Humanos – Quarta Seção – caso Soares de Melo c. Portugal, Queixa n.º 72850/14, acórdão, Estrasburgo 16 de Fevereiro de 2016 (Este acórdão tornar-se á definitivo nas condições definidas no artigo 44.º § 2 da Convenção. Pode sofrer alterações de forma).

No caso Soares de Melo c. Portugal,

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (quarta seção), reunido numa câmara composta por:

András Sajó, Presidente,

Vincent A. De Gaetano,

Bostjan M. Zupancic,

Nona Tsotsoria,

Paulo Pinto de Albuquerque,

Krzysztof Wojtyczek,

Iulia Antoanelle Motoc, Juízes,

E por Françoise Elens-Passos, Secretária de Seção,

Após ter deliberado em câmara do conselho em 26 de Janeiro de 2016,

Profere o seguinte Acórdão, adotado nesta data:

 

PROCESSO

1. Na origem do caso está uma queixa (n.º 72850/14) dirigida contra a República portuguesa através da qual uma cidadã Cabo-verdiana, a Sra. Liliane Sallete Soares de Melo (“a Requerente”), acionou o Tribunal Europeu (“o Tribunal”) em 5 de Dezembro de 2014, nos termos do artigo 34.º da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (“a Convenção”).

2 A Requerente foi representada pelas Sras. Dras. M. C. Neves Almeida e P. Penha Gonçalves, advogadas em Algés. O Governo português (“o Governo”) foi representado pela sua Agente, Dra. M. F. da Graça Carvalho, procuradora-geral adjunta.

3. A Requerente queixa-se de uma ofensa ao seu direito à vida privada e familiar, conforme garantido pelo artigo 8.º da Convenção, em razão da aplicação de uma medida de colocação em instituição de sete dos seus filhos com vista à sua adoção.

4. Em 17 de Fevereiro de 2015, por aplicação do artigo 39.º do seu Regulamento, o Tribunal pediu ao Governo para aplicar medidas provisórias de modo a permitir o acesso da Requerente aos seus filhos e o restabelecimento dos contatos entre estes últimos, pelo tempo necessário para decidir sobre o caso. Decidiu ainda que a queixa fosse tratada com prioridade, por aplicação do artigo 41.º do seu Regulamento.

5. Em 1 de Abril de 2015, a queixa foi comunicada ao Governo.

 

OS FACTOS

I. AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO

6. A Requerente nasceu em 1977 e reside em Algueirão-Mem Martins.

7. É mãe de dez filhos:

-S., uma filha, nascida em 1993,

-E., uma filha, nascida em 20 de Junho de 1995,

-I., uma filha, nascida em 27 de Agosto de 2001,

-M., um rapaz, nascido em 21 de Julho de 2004,

-Y., um rapaz, nascido em 22 de Agosto de 2005,

-I.R., um rapaz, nascido em 10 de Outubro de 2006,

-L. e M.S., um rapaz e uma rapariga, gémeos, nascidos em 18 de Setembro de 2008,

-A., um rapaz, nascido em 13 de Novembro de 2009 e

-R., uma filha nascida em 25de Novembro de 2011.

 

A. Do processo de promoção dos direitos e de proteção das crianças.

1. O processo diante da Comissão de proteção das crianças e jovens de Sintra.

8. Em 2005, a situação da família foi assinalada à Comissão de proteção das crianças e jovens (“a CPCJ”) de Sintra com fundamento em que a Requerente estava sem emprego havia quatro anos e que o pai das crianças praticava poligamia e estava frequentes vezes ausente do lar familiar.

9. Em 4 de Janeiro de 2007, por aplicação do artigo 55.º da lei de proteção das crianças e jovens em perigo (“a LPCJP”), a CPCJ estabeleceu um acordo de promoção dos direitos e de proteção das crianças (“o acordo de proteção”) com a Requerente e o seu cônjuge relativamente aos menores E., I., M., Y. e I.R. por uma duração de um ano. Este acordo rezava nas suas partes pertinentes para o caso:

“1. A mãe continuará com a guarda dos menores E., I., M., Y. e I.R., devendo prestar-lhes cuidados e incumbindo-lhe providenciar pelo seu sustento e zelar pela sua educação, formação, saúde e demais interesses dos filhos,

2. A mão fica ainda obrigada nomeadamente a:

a) manter a assiduidade e pontualidade escolar dos menores;

b) manter a higiene e organização da casa;

c) assegurar a consultas médicas de rotina e urgência,

d) assegurar a frequência de equipamentos de infância pelos menores M., Y. e I.R. ;

e) (...) A mãe fica obrigada ainda a procurar ocupação profissional remunerada para garantir a sua autonomia económica, devendo apresentar junto das entidades que asseguram o acompanhamento desta medida o respectivo comprovativo..

3. Ao pai caberá velar pelo cumprimento pela mãe do supra vertido.

4. Ao pai caberá ainda assegurar o suporte económico necessário à dita frequência de estabelecimentos de infância, bem como contribuir para o suprimento das necessidades fundamentais dos menores.

5. (...) aceitando os pais cooperar e colaborar com os respectivos técnicos, aceitando as suas orientações, recomendações, sugestões e propostas que visem contribuir para a manutenção das condições de vida, conforto, bem-estar e defesa dos interesses dos menores .”

 

10. Numa data não precisada, o acordo foi homologado pelo tribunal.

11. Em 22 de Maio de 2007, um trabalhador social fez uma visita à família e verificou que o apartamento em que vivia estava sujo e que o fornecimento de água corrente e de eletricidade estava cortado havia dois meses por causa do não pagamento das faturas.

12. Em 31 de maio de 2007, a CPCJ recebeu uma nova comunicação motivada pelo absentismo escolar de I. que se deveria a que esta teria de se ocupar dos seus irmãos e irmãs mais pequenos. Nesse mesmo dia a CPCJ acionou um processo de promoção e de proteção dos direitos das crianças e dos jovens em perigo (“o processo de proteção”) a respeito das crianças S., E., I., M., Y. e I.R.

2. O processo diante do tribunal de família de Sintra

13. Em 26 de Setembro de 2007, a CPCJ transmitiu o dossier ao Ministério Público junto do Tribunal de Família de Sintra face à falta de colaboração da requerente no quadro do processo de proteção instaurado. O Ministério Público requereu a abertura de um processo de proteção para as crianças E., I., M., Y., e I.R. com fundamento em que a Requerente não dispunha de condições materiais adequadas e que ela negligenciava estas crianças. A partir de então, a família foi seguida pela equipa dos serviços sociais junto do tribunal (Equipa de crianças e jovens do Instituto da Segurança Social de Apoio ao Tribunal) (“a ECJ”) de Sintra.

14 A Requerente e o seu cônjuge foram ouvidos, bem como as crianças mais velhas e os trabalhadores sociais que tinham acompanhado a família. Também houve lugar a uma visita ao domicílio familiar.

15. Por despacho de 21 de Dezembro de 2007, o Tribunal de Família decidiu aplicar uma medida de apoio junto dos pais, a respeito das crianças E., I., M., Y., e I.R. Esta medida foi várias vezes renovada.

16. Em 24 de Setembro de 2008, no decurso de uma visita ao domicílio familiar, os serviços sociais verificaram que as condições de habitação continuavam precárias.

17. Foi enviado um trabalhador social para junto da Requerente, ensiná-la a gerir o seu lar, a assegurar a higiene e a organização do domicílio e a tratar dos seus filhos.

18. Em 25 de Junho de 2009, o tribunal reuniu em audiência, nos termos do artigo 112.º da LPCJP. No decurso desta audiência, depois de serem tidas em conta as recomendações dos trabalhadores sociais, as seguintes cláusulas foram acrescentadas ao acordo de proteção:

“1. [Os pais deverão] integrar o menor I.R. num equipamento de infância no próximo ano lectivo.

2. O pai terá que iniciar uma actividade profissional remunerada, com situação regularizada na segurança social..

3. A mãe terá que fazer prova do seu acompanhamento no Hospital Fernando Fonseca, no âmbito do seu processo de laqueação de trompas..

4. O casal terá que fazer prova de que se encontra a regularizar a sua situação documental.

5. Os progenitores terão que entregar documentos para estudo da sua situação financeira, para ser avaliada a possibilidade de apoio económico,

6. Os progenitores terão que apresentar uma pessoa da sua rede familiar e/ou social para se constituir como suporte efectivo de apoio a este agregado, sendo que este elemento deverá comparecer junto desta equipa e/ou tribunal para ser co-responsabilizado.”

Ulteriormente, a CPCJ pediu o alargamento do processo de proteção às crianças L., M.S. e A.

19. Em 9 de Setembro de 2009, os serviços sociais efetuaram uma visita ao domicílio da Requerente.

20. Em 10 de Setembro de 2009, E., então com idade de 13 anos e que estava grávida, foi acolhida num centro de acolhimento temporário de assistência às mulheres. Em 24 de Outubro de 2009, deu à luz uma criança que veio a falecer em 15 de Dezembro de 2009.

21. Quanto a S., que não vivia com a família desde havia algum tempo, regressou ao domicílio familiar em Outubro de 2009. Então com idade de 16 anos, deu à luz uma filha em 31 de Dezembro de 2009.

22. Em Dezembro de 2009, a ECJ responsável pelo processo remeteu um relatório de acompanhamento ao tribunal. Indicava aí que a Requerente e o seu cônjuge não tinham respeitado os compromissos que haviam assumido no quadro do acordo de proteção e, nomeadamente:

- que o filho I.R. continuava sem estar inscrito num estabelecimento para crianças;

- que o pai não tinha regularizado a sua situação junto da Segurança Social;

- que a mãe não tinha procedido à operação de esterilização por laqueação das trompas e que não tinha seguido nenhum planeamento familiar, uma vez que acabava de dar à luz uma outra criança, um ano após ter dado nascimento a gémeos;

- que as suas últimas gravidezes não tinha sido objeto de acompanhamento médico,

- que os pais continuavam em situação irregular no País;

- que não tinham apresentado ninguém da sua rede familiar ou social que os pudesse ajudar a cuidar das crianças.

23. Em 5 de Fevereiro de 2010, a ECJ efetuou uma visita ao domicílio familiar. Entregou a seguir um relatório ao tribunal com as observações seguintes:

- as vacinas de M., L. e M.S. não estavam em dia;

- o pai tinha declarado receber 366 Euros (EUR) de rendimentos mensais;

- a Requerente não tinha rendimentos;

- a família recebia 393 EUR por mês a título de prestações familiares;

- a situação irregular de alguns membros da família constituía um obstáculo para a obtenção de prestações sociais,

- a Requerente tinha dito ter-se inscrito no hospital com vista a uma esterilização por laqueação das trompas, mas o hospital desmentira esta informação.

24. Por despacho de 3 de Março de 2010, o tribunal de família decidiu o alargamento do processo de proteção às crianças L., M.S., e A. (quanto a R., o alargamento foi pronunciado por um despacho de 5 de Janeiro de 2012).

25. Em Junho de 2010, uma trabalhadora social foi enviada junto da família para a auxiliar na assunção dos cuidados do lar. Durante seis semanas esteve presente, três a quatro vezes por semana, no domicílio da Requerente para a ensinar a organizar o seu lar. Ajudou-a, também, a mudar-se para outro apartamento.

26. Em 23 de Agosto de 2010, a ECJ apresentou um outro relatório segundo o qual:

- o pai ainda não tinha regularizado a sua situação junto dos serviços sociais;

- a Requerente persistia na sua recusa em submeter-se à operação visando a esterilização por laqueação das trompas;

- os pais não se tinham ainda apresentado com a documentação necessária ao estudo da sua situação financeira;

- nenhuma pessoa se tinha mostrado disponível para prestar apoio para a educação das crianças;

-E. tinha regressado às aulas e tinha passado ao nível superior, mas continuava a ajudar a sua mãe no apoio ao resto da sua família;

- I. tinha obtido aproveitamento no seu ano escolar;

- M. e Y. não frequentavam a escola com assiduidade;

- I.R. e A. não frequentavam a creche e ficavam em casa.

27. O tribunal marcou uma audiência para dia 23 de Setembro de 2010, mas os pais não compareceram.

28. Uma nova audiência foi marcada para o dia 26 de Outubro de 2010, na qual apenas compareceu S. No decurso da audiência, esta última declarou que a situação da família tinha melhorado.

29. Em Dezembro de 2010, a ECJ entregou um novo relatório ao tribunal, observando nomeadamente:

- que E. tinha deixado de ir à escola;

- que I. ainda não tinha sido inscrita no registo civil e que não beneficiava por isso de nenhuma subvenção social;

- que Y. e I.R. estavam frequentemente sujos e que acabavam por se lavar no jardim de infância;

- que não existia diálogo entre a família e a escola;

- que os gémeos estavam colocados em amas, que apresentavam falta de cuidados de higiene e que não estavam vestidos adequadamente em relação às estações do ano;

- que as vacinas de A. não estavam em dia.

30. A ECJ entregou um novo relatório em 24 de Junho de 2011. Este documento indicava o que segue:

- a família tinha-se mudado para um novo apartamento, cujas condições não tinham podido ser avaliadas, uma vez que a Requerente não abriu a porta do seu domicílio aos trabalhadores sociais,

- E. ia à escola, mas continuava a ocupar-se dos irmãos e irmãs em casa;

- I. ainda não estava inscrita no registo civil e não dispunha, assim, de um documento de identificação;

- o pai das crianças continuava ausente.

31. Numa data não precisada, o Ministério Público apresentou as suas alegações escritas, pedindo a aplicação de uma medida de apoio para a autonomia de vida de uma duração de dezoito meses a respeito de E., de uma medida de acolhimento institucional de longa duração relativamente a I., M. e Y., e de uma medida de confiança de I.R., L., M.S., A. e R. a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção com fundamento no artigo 35.º § 1 d), f) e g) da LPCJP.

32. Em 26 de Janeiro de 2012, o tribunal realizou uma audiência à qual nem a Requerente nem o seu cônjuge compareceram. No decurso desta, a ECJ declarou que a situação da família era sempre crítica uma vez que o acordo continuava a não ser cumprido. Relevava nomeadamente:

- que os gémeos tinham deixado de frequentar a creche, por falta de pagamento das despesas de acolhimento,

- que a mais velha das crianças continuava a tratar dos seus irmãos e irmãs;

- que I. continuava sem estar inscrita no registo civil.

33. Em 16 de Maio de 2012, o tribunal organizou um debate judicial. No decurso deste, a Requerente pediu ao tribunal para não lhe retirar a guarda dos seus filhos por quem nutria muita afeição, não os maltratava e eram toda a sua vida.

 

3. A sentença do Tribunal de Família da Comarca da Grande Lisboa - Noroeste – Sintra de 25 de Maio de 2012

34. Em 25 de Maio de 2012, o Tribunal de Família da Comarca da Grande Lisboa - Noroeste – Sintra (nova denominação do tribunal de família de Sintra) proferiu a sua sentença. Decidiu a aplicação:

- de uma medida de apoio à autonomia por uma duração de dezoito meses a respeito de E.;

- de uma medida de apoio à Requerente por uma duração de um ano, relativamente a I, por aplicação do artigo 39.º da LPCJP;

- de uma medida de colocação das crianças M., Y., I.R., L., M.S., A. e R. numa instituição com vista à sua adoção por aplicação do artigo 38.º-A da LPCJP.

Precisando que esta última medida se manteria em vigor até que a adoção fosse pronunciada em aplicação do artigo 62.º-A da LPCJP, o tribunal declarou o decaimento da autoridade parental da Requerente e do seu cônjuge relativamente a M., Y., I.R., L., M.S., A. e R., bem como a proibição de qualquer contato com estes últimos , por aplicação do artigo 1978.º-A do Código Civil.

Para sustentar a sua decisão, o tribunal considerou os relatórios da CPCJ e da ECJ. Os fundamentos da sua decisão são os seguintes:

(...) Ora resultou bem patente da factualidade provada a ausência quase total do pai e a incompetência da progenitora para o desempenho da sua função maternal, reflectida na falta de higiene, falta de comida e de cuidados de saúde, falta de supervisão, uso de roupas inadequadas à estação do ano, e negligência ao nível da omissão de integrar alguns menores em equipamento de infância e não acompanhamento do seu percurso escolar, bem como a omissão de um adequado planeamento familiar..

Realça-se especialmente a omissão da progenitora de não ter procedido ao registo da menor I., com a óbvia consequência da sua inexistência a nível jurídico, o que evidentemente obsta à concessão de apoios sociais à menor (...).

No tocante à falta de higiene, resultou provado que os menores andavam sujos, com falta de higiene de corpo e de roupa e que o jardim de infância até permitiu que os menores Y. e I. aí tomassem banho, que os colegas da menor I. recusavam-se a sentar aos eu lado por a mesma exalar um cheiro desagradável e os menores dormiam em colchões molhados de urina (...).

No tocante à falta de higiene da casa onde os menores tem residido resultou das diversas visitas domiciliárias realizadas que a casa apresentava-se suja, todas as crianças dormiam no mesmo quarto, o quarto remanescente servia para guardar roupa amontoada e outros produtos e por vezes estava sem água e electricidade (...).

Quanto à falta de cuidados de saúde aos menores, começava já pelas gravidezes não vigiadas, ausência de consultas médicas necessárias e vacinação obrigatória (...).

Relativamente à falta de supervisão, é evidente que ocorre quando a progenitora deixar ficar fios electricos soltos nas tomadas e as janelas acessíveis aos menores, as gravidezes da S. e da E acontecerem quando estas tinham, respectivamente, 16 e 13 anos de idade e ao deixar os filhos sozinhos em casa com a menor I com cinco anos de idade a tomar conta dos irmãos com a porta da rua fechada à chave (...).

A mãe deverá provar que é seguida no Hospital Fernando Fonseca com vista a uma esterilização por laqueação das trompas (...).

A Requerente tinha dito ter-se inscrito no hospital com vista a uma esterilização por laqueação das trompas, mas o hospital desmentiu esta informação.

A Requerente persistia na sua recusa de uma esterilização por laqueação das trompas (...).

Finalmente, quanto à omissão de um adequado planeamento familiar importa referir que a progenitora ao contrário do que se havia comprometido no acordo de promoção e protecção outorgado em 25.06.2009 não procedeu à laqueação das trompas e desde a instauração da acção até ao presente, nasceram mais quatro menores (...).

É certo que a progenitora manifestou em sede de debate judicial que as crianças não lhe fossem retiradas porque não maltratava os filhos, tem bastante carinho pelos mesmos e vive em função deles, transparecendo alguma afectividade em relação aos menores.

Sucede porém, que também não resulta dos autos qualquer prova da existência até agora de uma resposta satisfatória da sua parte e da parte do progenitor dos menores de disponibilidade, empenhamento e colaboração no sentido do cabal cumprimento da sua função parental..

(...).

Aliás, os progenitores, pelo menos desde 2007 que têm vindo a fazer depender o quotidiano dos menores mais da ajuda de terceiros (Banco alimentar, roupas das pessoas e entidades) do que da procura séria pelos seus próprios meios de formas de subsistência para si e seus filhos..

Os progenitores dos menores nem sequer beneficiam do Rendimento Social de Inserção por a sua situação documental encontrar-se irregular.

(...)”.

 

35. Em 8 de Junho de 2012, a decisão de colocação das crianças foi executada relativamente a Y., I.R., l., M.S., A. e R. então com idades, respetivamente de 6 anos, de 5 anos, de 3 anos, de 3 anos, de 2 anos e de sete meses. A medida não foi executada relativamente a M. por este não se encontrar no domicílio familiar no momento da retirada das crianças.

36. Em 11 de Junho de 2012, a Requerente e o seu cônjuge recorreram da sentença perante o Tribunal da Relação de Lisboa. Invocando o interesse superior das crianças, pediam que a execução do julgamento fosse suspensa até ao fim do processo. Alegavam de seguida:

- que esta separação fazia incorrer no risco de fazer perigar o bem estar das crianças;

- que a sua filha I tinha sido entretanto inscrita no registo civil;

- que não puderam ter conhecimento das alegações do Ministério público e que não lhes haviam podido responder,

- que não estavam representados por um advogado perante o tribunal de família;

- que só tinham sido informados da data da audiência no tribunal depois de terem contactado a secretaria, por telefone:

- que não existiam outros motivos para além da sua situação de carência económica para justificar a aplicação da medida de proteção que entendiam ser a mais gravosa, tratando-se dos seus filhos;

- que a medida de colocação em instituição com vista à adoção relativamente às crianças M., Y., I.R., L., M.S., A. e R. era desproporcionada em relação ao que lhes era censurado em razão, nomeadamente, segundo eles, da ausência de maus tratos ou de violência a seu respeito e da existência de laços afetivos fortes entre a Requerente e os filhos,

- que as apreciações da situação familiar eram contraditórias, pela razão que em relação às filhas mais velhas foi aplicada uma medida de apoio à Requerente, em relação aos mais novos, foi aplicada a medida de proteção a mais grave.

- que a Requerente tinha sido forçada a sofrer uma operação de esterilização por laqueação das trompas e que o facto de não ter cumprido este compromisso tinha sido retido contra ela para justificar a medida de proteção aplicada a respeito das crianças.

37. Por um requerimento de 19 de junho de 2012, a Requerente pediu ao tribunal informações sobre a situação dos seus filhos. Informou ainda o tribunal que tinha iniciado uma atividade profissional e que tinha inscrito a sua filha I. no registo civil de Sintra.

38. O recurso interposto pela Requerente e o seu marido não foi acolhido pelo Tribunal de Família, que considerou que tinha sido interposto fora do prazo fixado. A Requerente contestou a decisão do tribunal perante a Relação de Lisboa e a seguir, diante do Tribunal Constitucional. Em 10 de Março de 2013, este deu provimento ao seu recurso declarando que o recurso tinha sido interposto dentro do prazo legal.

39. Em 1 de Julho de 2013, a Requerente pediu ao tribunal para suspender a execução da sentença de modo a evitar a rutura do elo familiar entre ela e os seus filhos, por uma parte, e entre estes, por outra.

40. Em 11 de Outubro de 2013, pediu ao Tribunal da Relação de Lisboa a aplicação de medidas cautelares para poder ter acesso aos seus filhos.

 

4. Os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa

41. Em data não precisada, o Tribunal da Relação de Lisboa, reunindo em formação de juiz singular, proferiu uma sentença confirmando a do tribunal de família de Lisboa Nordeste – Sintra, bem como os factos estabelecidos pela primeira instância.

Sobre a esterilização, o Tribunal da Relação exprimiu-se como segue, na parte relativa aos factos assentes:

A mãe terá que fazer prova do seu acompanhamento no Hospital Fernando Fonseca, no âmbito do seu processo de laqueação de trompas (...).

A progenitora não procedeu à laqueação de trompas (...), pois um ano após o nascimento dos gémeos, em Novembro de 2009, estava internada para o nascimento do seu nono filho (...).

A progenitora afirmou que tinham-se inscrito para laqueação das trompas, aguardando chamada mas o hospital informou de que não é verdade que exista qualquer pedido ou inscrição.

A progenitora persistia na rejeição à laqueação das trompas;

Aceitamos os factos fixados.

(...)”

Tratando-se do argumento extraído da falta de notificação das alegações do Ministério Público, o Tribunal da Relação considerou que estas tinha sido efetivamente enviadas para a morada que a Requerente tinha indicado ao tribunal no quadro do processo, e que tinham sido devolvidas ao tribunal com a menção “não atendeu” e que a Requerente não demonstrou que não tinham sido levadas ao seu conhecimento.

Sobre o argumento retirado da ausência de maus tratos relativamente às crianças, e a existência de laços afetivos, o Tribunal da Relação exprimiu-se como segue:

“(...) A evidência de não haver maus tratos pode ser fruto da falta de atenção aos menores. E os mínimos ou inexistentes carinhos alimentares podem, igualmente, ser negligência. Donde. Parece-nos falaciosa a argumentação trazida.

Mas será que isto se espelha na factualidade assente? Tememos que sim.

A matéria de facto é pródiga na demonstração de que não foi dado aos menores pelos progenitores as mínimas condições de habitabilidade e segurança material e psicológica, encontrando-se lixo amontoado pelo chão, a água e a luz já cortadas há dois meses por falta de pagamento. Mais. Têm a vacinação desatualizada. A progenitora saia de casa e deixava as filhas mais velhas a cuidar dos irmãos mais novos, que, por tal motivo, têm de faltar à escola. Aliás a progenitora nunca diligenciou pelo registo da menor I, encontra-se separada do progenitor dos menores, e só isto demonstra a negligência espiritual. Acresce que não se apresenta e demonstra os meios económicos que permitam dar aos menores uma vida condigna, o que só por si incita a uma intervenção judicial vigorosa.

(...) A falta de empenhamento dos progenitores em proporcionar desafogo material aos menores é, por si próprio, uma grande violência que legitima a decisão tomada em 1.ª instância. E com isto, não se pode apelar à prevalência do princípio da família natural.

(...)”.

42. Em 26 de Dezembro de 2013, a Requerente impugnou esta decisão perante a conferência de três juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa. Em 27 de Março de 2014, este confirmou, por meio do procedimento de copy-paste, o acórdão que havia sido proferido.

43. Em 21 de Abril de 2014, a Requerente recorreu em revista para o Supremo Tribunal. Alegava nomeadamente:

- que não tinha tido conhecimento das alegações do Ministério Público,

- que o Ministério Público tinha pedido a aplicação de uma medida de colocação em instituição dos seus filhos M. e Y., e que o tribunal, quanto a ele, tinha determinado a colocação destes em instituição com vista à sua adoção, e que tinha violado, assim, o princípio do contraditório;

- que o Tribunal da Relação tinha omitido pronunciar-se em relação a factos novos, a saber, nomeadamente, segundo ela, que ela trabalhava desde 12 de Junho de 2012 e que tinha procedido à inscrição da sua filha I. no registo civil;

- que tinha sido forçada a comprometer-se a sofrer uma esterilização por laqueação das trompas no quadro do acordo com os Serviços Sociais, e que isto violava os seus direitos fundamentais e infringia o artigo 55.º da LPCJP;

- que o facto de não ter cumprido o seu compromisso tinha sido considerado pelo tribunal como uma circunstância agravante e que tinha fundamentado a colocação dos seus filhos em instituição com vista à sua adoção;

- que o Tribunal da Relação não tinha dado resposta ao seu pedido de acesso aos seus filhos;

- que a medida por ela denunciada não era proporcional ao que lhe era censurado e que tinha sido executada com o recurso à força, com a intervenção da polícia, enquanto o seu recurso estaria ainda pendente.

A Requerente sustentava, ainda, que a interpretação que tinha sido feita dos artigos 35.º par. 1, g) e 55.º par. 2 da LPCJP não era conforme com a Constituição e que a natureza não obrigatória de representação por um advogado, enunciada, segundo ela, no artigo 103.º da LPCJP, era contrária ao direito a um processo equitativo.

44. Por despacho de 22 de Junho de 2014, o Tribunal da Relação de Lisboa admitiu o recurso, sem, no entanto, lhe conferir efeito suspensivo.

45. Entretanto, em 20 de Fevereiro de 2014, a Requerente tinha apresentado uma queixa diante do Conselho Superior da Magistratura, por meio da qual denunciava a ausência de resposta a todos os seus pedidos de acesso aos seus filhos e a impossibilidade de os visitar.

 

5. O acórdão do Supremo Tribunal de 28 de Maio de 2015

46. Em 28 de Maio de 2015, o Supremo Tribunal proferiu um acórdão por meio do qual rejeitou o recurso da Requerente com base nos factos estabelecidos em primeira instância e confirmados pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Tratando-se do argumento extraído da ausência de notificação das alegações do Ministério Público no quadro do processo perante o tribunal de família, o Supremo Tribunal considerou:

- que a Requerente não tinha demonstrado não ter efetivamente recebido a carta do tribunal contendo as alegações;

- que tinha apresentado em 28 de Fevereiro de 2012, um pedido de consulta do processo, que o tribunal tinha acedido a este pedido e que, por conseguinte, a interessada tinha tomado conhecimento das alegações por esta via;

- que a carta com a notificação da data da audiência tinha sido enviada à morada da Requerente que constava no processo e que tinha sido devolvida com a menção “não atendeu”;

- que ressaltava do processo que um escrivão do tribunal tinha comunicado por telefone, a data da audiência à Requerente e que esta tinha seguidamente pedido o seu adiamento, o que lhe tinha sido negado.

O Supremo Tribunal considerou ainda que o Tribunal da Relação não tinha referido no seu acórdão, o compromisso da interessada em se submeter a uma operação de esterilização, que não se tinha assim fundamentado com este, e que não era, por conseguinte, pertinente referir-se a ele e que os elementos novos referidos pela Requerente perante o Tribunal da Relação tinham sido tomados em conta por esta jurisdição no seu acórdão. Quanto à esterilização, o Supremo Tribunal expressou-se como segue, na parte relativa aos factos provados:

“A progenitora não procedeu à laqueação das trompas (...) pois, um ano após o nascimento dos gémeos, em Novembro de 2009, estava internada para o nascimento do seu 9.º filho (...).

A progenitora afirmou que tinham-se inscrito para a laqueação das trompas, aguardando chamada mas o hospital informou de que não é verdade que exista qualquer pedido ou inscrição.

(...)”.

 

47. Quanto à aplicação da medida de colocação das crianças em instituição com vista à sua adoção, o Supremo Tribunal recordou que não se podia pronunciar senão sobre a conformidade da medida com a lei e não sobre a oportunidade ou a adequação desta ao caso. Entendeu que os factos que tinham sido considerados assentes eram bastantes e que, desde logo, as disposições legais em causa, no caso o artigo 1978.º do Código Civil, e o art.º 34.º da LPCJP, não tinham sido infringidas.

Tratando-se do fundamento de queixa incidente sobre uma falta de resposta do Tribunal da Relação aos pedidos de acesso aos seus filhos formulados pela Requerente, o Supremo Tribunal considerou:

“(...) o regime de visitas reclamado revela-se e revelou-se incompatível e em colisão com a própria decisão recorrida que havia deliberado pela medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, com inibição do poder paternal, aliás, em conformidade com o preceituado no art. 1978.º-A do Código Civil (...)”

E concluiu:

“assim, em função da realidade material que vem provada: uma família biológica desestruturada, com pai ausente do quotidiano dos filhos e a mãe com um percurso de vida marcado por grande instabilidade afectiva, profissional e manifestamente negligente em relação aos cuidados devidos aos filhos menores de higiene , saúde, alimentação, habitacional e ao nível da educação, configura uma situação potencialmente perigosa, e, por isso, não se verifica qualquer ilegalidade na decisão das instâncias, quando optam à luz dos citados art. 1978.º , n.º 1 do C. Civil e art. 35.º al. g) da LPCJ, pela medida de confiança a instituição com vista a futura adopção e a consequente inibição do poder paternal em relação aos menores, em conformidade com o art. 1978-A do C. Civil.”

48. Em 16 de Junho de 2015, a Requerente reclamou perante a Conferência do Supremo Tribunal. Pedia uma reforma do acórdão, apresentando várias causas de nulidade e censurando o Supremo Tribunal por não se ter pronunciado sobre a questão da ausência de notificação das alegações do Ministério Público e da data da audiência diante do tribunal de família.

49. Por um acórdão de 9 de Julho de 2015, a Conferência do Supremo Tribunal rejeitou o recurso da Requerente com fundamento em que a notificação da data da audiência tinha sido feita na morada da Requerente que constava do processo, e que a interessada tinha tido acesso, de facto, às alegações e aos meios de prova que constavam em apoio destas, uma vez que tinha consultado o processo.

50. A Requerente impugnou o acórdão no quadro de um recurso de nulidade por meio do qual contestava ter consultado o processo. O Supremo Tribunal rejeitou as suas pretensões em acórdão de 17 de Setembro de 2015.

 

6. O processo diante do Tribunal Constitucional

51. Ulteriormente, em 5 de Outubro de 2015, a Requerente apresentou uma queixa perante o Tribunal Constitucional, em que arguia a inconstitucionalidade de várias disposições da LPCJP e do artigo 1978.º do Código Civil. Denunciava nomeadamente:

- a interpretação feita pelos tribunais a quo, dos artigos 35.º par. 1 g) e 38.º-A da LPCJP, ao considerarem que a medida de colocação com vista à adoção podia ser aplicada mesmo se o pai ou a mãe não tinham tido conhecimento das alegações do Ministério Público pedindo uma tal medida e que a notificação se presumia;

- a interpretação feita pelos tribunais a quo, dos artigos 35.º par. 1 d) e g), 45.º e 55.º par. 2 da LPCJP ao entenderem que o desrespeito pela Requerente do compromisso de se esterilizar podia constituir uma circunstância agravante e fundamentar a aplicação de uma medida de colocação em instituição com vista à adoção;

- a natureza não obrigatória da representação por advogado no decurso do processo perante os tribunais de primeira instância, que constaria do artigo 103.º da LPCJP.

52. Segundo as últimas informações recebidas, as quais remontam a 1 de Dezembro de 2015, o processo diante do Tribunal Constitucional continua pendente.

 

B. Da intervenção do Tribunal a título do artigo 39.º do seu regulamento

53. Entretanto, por fax de 19 de Novembro de 2014, a Requerente acionou, com fundamento no artigo 39.º do Regulamento, o Tribunal Europeu (o Tribunal) com um pedido com vista a obter um direito de visita àqueles dos seus filhos que tinham sido objeto de uma medida de colocação com vista à sua adoção.

54. Em 17 de Fevereiro de 2015, o Tribunal convidou o Governo português, por aplicação da referida disposição, a adotar medidas provisórias no sentido de permitir o acesso da Requerente aos seus filhos e o restabelecimento de contactos entre estes pela duração do processo diante do Tribunal.

55. Em 5 de Março de 2015, o Tribunal de Família autorizou a Requerente a retomar contacto com os seus filhos.

56. Desde 15 de Março de 2015, a Requerente visita semanalmente os seus filhos nas três instituições, sitas em Sintra, Cascais e Alverca, onde estes foram colocados.

 

 

 

II. OS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS E O DIREITO INTERNO PERTINENTES

A. As observações finais do Comité dos direitos da criança das Nações Unidas relativas ao terceiro e quarto relatórios periódicos de Portugal

57. Na conformidade do artigo 44.º da Convenção internacional sobre os direitos da criança, o Comité dos direitos da criança das Nações Unidas examinou os terceiro e quarto relatórios periódicos de Portugal, apresentados num só documento (CRC/C/PRT/3-4), nas suas 1860ª e 1861ª sessões (ver CRC/C/SR.1860 e 1861), que tiveram lugar em 22 de Janeiro de 2014, e adotou, na 1875ª sessão (ver CRC/C/SR. 1875), de 31 de Janeiro de 2014, as suas observações finais relativas a estes relatórios, cujas partes pertinentes para o caso rezam:

“39. Ao congratular-se pela existência de um vasto leque de programas de auxílio social, nomeadamente o Programa de apoio social de urgência, o Comité está preocupado com o facto de que numerosas famílias, em particular as que se encontram em situação de pobreza, não beneficiam de uma assistência adequada para exonerar-se das suas responsabilidades de pais criando filhos, nomeadamente em matéria de apoio financeiro, de educação acessível para a pequena infância e de jovens crianças. O Comité está particularmente preocupado com a situação das crianças que se encontram no seio de famílias atingidas pela crise económica atual, que carecem de medidas sociais de discriminação positiva, em particular as famílias monoparentais, as famílias com crianças deficientes e as famílias vivendo em situação de pobreza persistente.

40. O Comité recomenda ao Estado parte o redobrar dos esforços para conceder uma assistência apropriada aos pais e aos tutores legais, no sentido de lhes permitir satisfazer as suas responsabilidades de pais criando crianças, em particular quando se encontram em situações de pobreza. Recomenda ainda ao Estado parte o velar por que nenhum grupo de crianças viva abaixo da linha de pobreza. O Comité recomenda ainda ao Estado parte o reforço do sistema de prestações familiares e de abonos para as famílias bem como de outros serviços, tais como os serviços de consulta e orientação familiares, e, bem assim, os serviços de guarda e de educação da pequena infância, para trazer um apoio às famílias de duas ou mais crianças, às famílias com filhos deficientes e às famílias vivendo em situação de pobreza persistente, de acordo com o documento de orientação da Comissão europeia em matéria de guarda e de educação das crianças.

41. O Comité acolhe com satisfação a adoção da lei relativa à proteção das crianças e jovens em perigo, as medidas adotadas para a reunificação das famílias e os esforços tendentes a promover a redução do número de colocações em instituição, nomeadamente por meio do aumento do número de crianças vivendo em fogos coletivos. O Comité exprime todavia a sua preocupação face:

a) Ao fraco número de famílias de acolhimento e de colocação de crianças em famílias, e face ao recurso ainda muito frequente à colocação em instituição, em particular no que respeita às crianças de menor idade;

(...)

42. O Comité recomenda ao Estado parte a execução das medidas a seguir enunciadas, tendo em conta as Linhas diretrizes relativas à proteção de substituição para as crianças, anexas à Resolução 64/142 de 18 de Dezembro de 2009, da Assembleia Geral das Nações Unidas:

a) Aumentar o apoio concedido às famílias biológicas para evitar as colocações em estruturas de substituição; reforçar as disposições relativas à proteção no seio da família, tal como a família alargada, os sistemas de colocação em família e em estabelecimentos de colocação, a adoção de todas as medidas necessárias para que a proteção de substituição para as crianças jovens, em particular as crianças com idade inferior a 3 anos, se inscreva num quadro familiar;

(...)

57. O Comité acolhe com satisfação a decisão do Estado parte de aumentar os abonos e as prestações familiares em proveito dos casais vulneráveis com filhos, isto é, as famílias monoparentais, as famílias com dois ou mais filhos, as famílias com filhos deficientes e as famílias vivendo numa pobreza persistente; acolhe com satisfação a expansão do programa de refeições na escola e a operação do Programa social de urgência em 2011, com o fim de reduzir ao mínimo os efeitos da crise financeira sobre os casais vulneráveis. O Comité está contudo preocupado com o nível elevado de desnudamento entre as crianças e com a aplicação de medidas de austeridade que têm efeitos penosos sobre as famílias, o que acresce consideravelmente o risco de expor as crianças à pobreza e de afetar o seu gozo de numerosos direitos protegidos pela Convenção, nomeadamente os direitos à saúde, à educação e à proteção social.

58. O Comité insta vivamente o Estado parte a redobrar os esforços para combater, simultaneamente na imediatez e no tempo, o nível elevado de pobreza das crianças, nomeadamente por meio da adoção de políticas públicas e de um Plano nacional de luta contra a pobreza das crianças. Estas políticas e este plano deveriam consistir na operação de um quadro coerente, compreendendo medidas prioritárias de combate à exclusão das crianças, com objetivos precisos e suscetíveis de medição, completados por indicadores claros e por datas limite, e beneficiando de um apoio económico e financeiro suficiente.

(...)”.

 

B. O direito interno

1. O Código Civil

58. As disposições pertinentes, no caso, do Código Civil, vigente no momento dos factos rezam:

Artigo 1978.º
Confiança com vista a futura adopção

 

1 - O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações: 
(...)
d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança; 
(...)

2 - Na verificação das situações previstas no número anterior, o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança. 
(...)
5 -  Têm legitimidade para requerer a confiança judicial do menor o Ministério Público, o organismo de segurança social da área da residência do menor, a pessoa a quem o menor tenha sido administrativamente confiado e o director do estabelecimento público ou a direcção da instituição particular que o tenha acolhido.
(...)”

 

 

Artigo 1978.º-A
Efeitos (...) da medida de (...) confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção.


Decretada (...) a medida de promoção e protecção de confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção, ficam os pais inibidos do exercício do poder paternal.

 

 

2 A Lei de proteção das crianças e dos jovens em perigo

59. No momento dos factos, a LPCJ, regida pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro de 1999 na sua redação resultante da Lei n.º 31/2003, de 22 de Agosto de 2003, estabelecia o regime e o processo de promoção de direitos e proteção das crianças e jovens em perigo .

60. Nos termos desta lei, havia que considerar “criança” uma pessoa menor de 18 anos e por “jovem” uma pessoa de menos de 21 anos que tivesse solicitado o prosseguimento da intervenção que tinha sido instaurada antes dos seus 18 anos (artigo 5.º a). As medidas de promoção de direitos ou de proteção de crianças eram adotadas pelas Comissões de proteção das crianças ou dos jovens em perigo ou pelos tribunais (artigo 5.º e)). Tinham por objetivo a subtração das crianças ou dos jovens ao perigo a que estavam expostos e dar-lhes condições que lhes permitissem ter acesso à segurança, aos cuidados de saúde, a uma educação ou a uma formação, favorecer o seu desenvolvimento e permitir-lhes uma reabilitação física e psicológica em relação a qualquer forma de abuso ou de exploração (artigo 34.º).

61. As partes pertinentes, no caso, desta Lei rezavam:

Artigo 9.º
Consentimento

 

“1. A intervenção das comissões de protecção das crianças e jovens depende do consentimento expresso dos seus pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto, consoante o caso.

(...)”

 

Artigo 35.º
Medidas

 

1 - As medidas de promoção e protecção são as seguintes: 
a) Apoio junto dos pais; 
b) Apoio junto de outro familiar; 
c) Confiança a pessoa idónea; 
d) Apoio para a autonomia de vida; 
e) Acolhimento familiar; 
f) Acolhimento em instituição. 
g) Confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção. 
2 - As medidas de promoção e de protecção são executadas no meio natural de vida ou em regime de colocação, consoante a sua natureza, em meio natural de vida ou em regime de colocação e podem ser decididas a título provisório.

(...)”.

 

Artigo 38.º
Competência para aplicação das medidas

 

“A aplicação das medidas de promoção dos direitos e de protecção é da competência exclusiva das comissões de protecção e dos tribunais; (...)”.

 

Artigo 38.º-A
Confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção

 

“A medida de confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção, aplicável quando se verifique alguma das situações previstas no artigo 1978.º do Código Civil, consiste: 
a) Na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de candidato seleccionado para a adopção pelo competente organismo de segurança social; 
b) Ou na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de instituição com vista a futura adopção”. 

 

Artigo 39.º
Apoio junto dos pais

 

A medida de apoio junto dos pais consiste em proporcionar à criança ou jovem apoio de natureza psicopedagógica e social e, quando necessário, ajuda económica.

 

Artigo 41.º
Educação parental

 

“1 - Quando sejam aplicadas as medidas previstas nos artigos 39.º e 40.º, os pais (...) podem beneficiar de um programa de formação visando o melhor exercício das funções parentais.

(...)”

 

Artigo 45.º
Apoio para a autonomia de vida

 

“1 - A medida de apoio para a autonomia de vida consiste em proporcionar directamente ao jovem com idade superior a 15 anos apoio económico e acompanhamento psicopedagógico e social, nomeadamente através do acesso a programas de formação, visando proporcionar-lhe condições que o habilitem e lhe permitam viver por si só e adquirir progressivamente autonomia de vida.

(...).”

 

Artigo 49.º
Noção de acolhimento em instituição

 

“1. A medida de acolhimento em instituição consiste na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações e equipamento de acolhimento permanente e de uma equipa técnica que lhes garantam os cuidados adequados às suas necessidades e lhes proporcionem condições que permitam a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral.

(...).”

 

Artigo 55.º
Acordo de promoção e protecção

 

“1 - O acordo de promoção e protecção inclui obrigatoriamente: 
a) A identificação do membro da comissão de protecção ou do [técnico] a quem cabe o acompanhamento do caso; 
b) O prazo por que é estabelecido e em que deve ser revisto; 
c) As declarações de consentimento ou de não oposição necessárias. 
2 - Não podem ser estabelecidas cláusulas que imponham obrigações abusivas ou que introduzam limitações ao funcionamento da vida familiar para além das necessárias a afastar a situação concreta de perigo”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Artigo 56.º
Acordo de promoção e protecção relativo a medidas em meio natural de vida

 

“1 - No acordo de promoção e de protecção em que se estabeleçam medidas a executar no meio natural de vida devem constar nomeadamente as cláusulas seguintes: 
a) Os cuidados de alimentação, higiene, saúde e conforto a prestar à criança ou ao jovem pelos pais (...); 
b) A identificação do responsável pela criança ou pelo jovem durante o tempo em que não possa ou não deva estar na companhia ou sob a vigilância dos pais ou das pessoas a quem estejam confiados, por razões laborais ou outras consideradas relevantes; 
c) O plano de escolaridade, formação profissional, trabalho e ocupação dos tempos livres; 
d) O plano de cuidados de saúde, incluindo consultas médicas e de orientação psicopedagógica, bem como o dever de cumprimento das directivas e orientações fixadas; 
e) O apoio económico a prestar, sua modalidade, duração e entidade responsável pela atribuição, bem como os pressupostos da concessão.

(...)”

 

Artigo 62.º-A
Medida de confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção

 

“1 - A medida de confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção dura até ser decretada a adopção e não está sujeita a revisão. 
2 – (...) não há lugar a visitas por parte da família natural.

(...)”
 

 

Artigo 85.º
Audição dos titulares do poder paternal

 

“Os pais, o representante legal e as pessoas que tenham a guarda de facto da criança ou do jovem são obrigatoriamente ouvidos sobre a situação que originou a intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e protecção”.

 

Artigo 100.º
Processo

 

“O processo judicial de promoção dos direitos e protecção das crianças e jovens em perigo, doravante designado processo judicial de promoção e protecção, é de jurisdição voluntária”.

 

Artigo 103.º
Advogado

 

“1 - Os pais, o representante legal ou quem tiver a guarda de facto podem, em qualquer fase do processo, constituir advogado ou requerer a nomeação de patrono que o represente, a si ou à criança ou ao jovem. 
2 - É obrigatória a nomeação de patrono à criança ou jovem quando os seus interesses e os dos seus pais, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto sejam conflituantes e ainda quando a criança ou jovem com a maturidade adequada o solicitar ao tribunal. 
(...)
4 - No debate judicial é obrigatória a constituição de advogado ou a nomeação de patrono à criança ou jovem”.

 

 

Com a entrada em vigor, prevista para 8 de Dezembro de 2015, da Lei n.º 142/2015, de 8 de Setembro de 2015, a alínea 4 do artigo 103.º, passará a rezar:

“4 - No debate judicial é obrigatória a constituição de advogado ou a nomeação de patrono aos pais quando esteja em causa a aplicação da medida prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º e, em qualquer caso, à criança ou jovem”.

 

Artigo 104.º
Contraditório

 

“1 - A criança ou jovem, os seus pais, representante legal ou quem tiver a guarda de facto têm direito a requerer diligências e oferecer meios de prova. 
2 - No debate judicial podem ser apresentadas alegações escritas e é assegurado o contraditório. 
3 - O contraditório quanto aos factos e à medida aplicável é sempre assegurado em todas as fases do processo, designadamente na conferência tendo em vista a obtenção de acordo e no debate judicial, quando se aplicar a medida prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º”

 

Artigo 106.º
Fases do processo

 

“1 - O processo de promoção e protecção é constituído pelas fases de instrução, debate judicial, decisão e execução da medida.

(...)”

 

Artigo 110.º
Encerramento da instrução

 

“O juiz, ouvido o Ministério Público, declara encerrada a instrução e: 
(...) 
c) Quando se mostre manifestamente improvável uma solução negociada, determina o prosseguimento do processo para realização de debate judicial e ordena as notificações a que se refere o n.º 1 do artigo 114.º”

 

Artigo 112.º
Decisão negociada

 

“O juiz convoca para a conferência, com vista à obtenção de acordo de promoção e protecção, o Ministério Público, os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto, a criança ou jovem com mais de 12 anos e as pessoas e representantes de entidades cuja presença e subscrição do acordo seja entendida como relevante”.

 

Artigo 114.º
Debate judicial

 

“1 - Se não tiver sido possível obter o acordo de promoção e protecção, (...) o juiz notifica o Ministério Público, os pais, o representante legal, quem detiver a guarda de facto e a criança ou jovem com mais de 12 anos para alegarem, por escrito, querendo, e apresentarem prova no prazo de 10 dias. 
2 - O Ministério Público deve alegar por escrito e apresentar provas sempre que considerar que a medida a aplicar é a prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º 
3 - Recebidas as alegações e apresentada a prova, o juiz designa dia para o debate judicial e ordena a notificação das pessoas que devam comparecer. 
4 - Com a notificação da data para o debate judicial é dado conhecimento aos pais, ao representante legal ou a quem tenha a guarda de facto das alegações e prova apresentada pelo Ministério Público e a este das restantes alegações e prova apresentada”.

 

3. O Código de Processo Civil

62. O artigo 1409.º do Código de Processo Civil, em vigor no momento dos factos, dispunha nas suas partes pertinentes para o caso:

“(...)

4 - Nos processos de jurisdição voluntária não é obrigatória a constituição de advogado, salvo na fase de recurso.”

 

 

O DIREITO

I. SOBRE A VIOLAÇÃO ALEGADA DO ARTIGO 8.º DA CONVENÇÃO

63. Invocando os artigos 6.º § 1, 8.º e 13.º da Convenção, a Requerente denuncia uma ofensa ao seu direito ao respeito da sua vida familiar em razão da aplicação de uma medida de colocação com vista à adoção a respeito dos seus sete filhos mais jovens e da proibição que lhe foi imposta com a sentença do tribunal de família de Lisboa Nordeste, de 25 de Maio de 2012, de ter acesso a estes. Denuncia, ainda, que os tribunais fundamentaram as suas decisões no facto de não ter sido cumprido o seu compromisso com vista a um planeamento familiar adequado.

64. O Governo contesta a tese da Requerente.

65. Senhor da qualificação jurídica dos factos da causa, o Tribunal entende adequado proceder ao exame dos fundamentos de queixa colocados pela Requerente sob o ângulo, apenas, do artigo 8.º da Convenção, que exige que o processo decisório que desemboca em medidas de ingerência seja equitativo e que respeite, como se deve, os interesses protegidos por esta disposição (Kutzner c. Alemanha, n.º 46544/99, § 56, CEDH 2002-I, Kriz c. República Checa (dec.), n.º 26634/03, 29 de Novembro de 2005, e Pontes c. Portugal, n.º 19554/09, § 67, 10 de Abril de 2012).

O artigo 8.º da Convenção dispõe, nas suas partes pertinentes para o caso:

“1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida (...) familiar (...).

2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária (...)para a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e liberdades de terceiros.”

 

A. Da admissibilidade

1. Argumentos das partes

66. O Governo opõe a exceção retirada da natureza prematura da queixa com fundamento em que a Requerente interpôs, depois do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Maio de 2015, um recurso perante o Tribunal Constitucional que continua pendente. É de parecer que, se o tribunal Constitucional der jus ao pedido da requerente quanto às várias alegações de inconstitucionalidade de normas por ela levantadas nas suas alegações de recurso, o caso deverá ser reenviado para a primeira instância e, assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não será ainda definitivo.

67. A Requerente alega que o recurso de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional não pode ser encarado como um recurso efetivo a exercer por aplicação do artigo 35.º § 1 da Convenção. Alega ter apresentado o seu recurso perante o Tribunal Constitucional para evitar que a decisão de colocação dos seus filhos com vista à adoção se torne definitiva. Além do mais, indicando que não existe perante o Tribunal Constitucional nenhum recurso contra uma violação de direitos fundamentais equivalente ao recurso de amparo, ela sustenta que este tribunal não pode pronunciar-se senão sobre o caráter conforme à Constituição de uma norma ou da sua interpretação por uma jurisdição inferior e que não pode, assim, decidir, quanto ao fundo, um caso já decidido pelo Supremo Tribunal. Acrescenta que, supondo que o Tribunal Constitucional venha a dar um seguimento favorável ao seu recurso, esta jurisdição não estaria vinculada a fazer baixar uma sentença para uma nova decisão quanto ao fundo. Para concluir, a Requerente indica que a retirada dos seus filhos foi executada em 8 de Junho de 2012, que a violação por ela denunciada já é, assim, efetiva e que, por conseguinte, a queixa não é prematura.

2. Apreciação do Tribunal

68. O Tribunal recorda que, nos termos do artigo 35.º § 1 da Convenção, ele apenas pode ser acionado após o esgotamento das vias de recurso internas. Qualquer requerente deve ter dado às jurisdições internas a oportunidade que esta disposição tem por finalidade assegurar, em princípio, aos Estados contratantes: prevenir ou corrigir as violações alegadas contra eles antes que estas alegações sejam submetidas aos órgãos da Convenção (ver, por exemplo, Moreira Barbosa c. Portugal (dec.), n.º 65681/01, CEDH 2004-V, e Cardot c. França, 19 de Março de 1991, § 36, Série A, n.º 200). Esta regra repousa na hipótese, objeto do artigo 13.º da Convenção – com a qual apresenta estreitas afinidades -, da ordem interna oferecer um recurso efetivo quanto à violação alegada (ver, por exemplo, Selmouni c. França [GC], n.º 25803/04, § 74, CEDH 1999-V).

69. O Tribunal recorda, além do mais, que o artigo 35.º da Convenção não prescreve o esgotamento senão dos recursos que, sendo relativos às violações incriminadas, sejam disponíveis e adequados. Estes recursos devem existir num grau suficiente de certeza, não apenas em teoria, mas também na prática, sem o que lhes faltam a efetividade e a acessibilidade desejadas (ver, entre muitos outros, Vernillo c. França, 20 de Fevereiro de 1991, § 27, Série A n.º 198, Dalia c. França, 19 de Fevereiro de 1998, § 38, Recueil des arrêts et décisions 1998-I, e Vuckovic e outros c. Sérvia (exceção preliminar) [GC], n.ºs 17153/11 e 29 outros, § 71, 25 de Março de 2014).

70. O Tribunal deve aplicar a regra do esgotamento das vias de recurso internas tendo devidamente em conta o seu contexto: o mecanismo de salvaguarda dos direitos humanos que as Partes contratantes acordaram em instaurar. O Tribunal reconheceu, assim, que o artigo 35.º § 1 da Convenção deve ser aplicado com uma certa flexibilidade e sem formalismo excessivo. Admitiu, para mais, que esta regra não se acomoda com uma aplicação automática e que não reveste um carácter absoluto; para controlar o seu respeito, é essencial ter em conta as circunstâncias da causa. Isto significa, nomeadamente, que o Tribunal deve ter em conta, de modo realista, não apenas os recursos previstos em teoria no sistema jurídico da Parte interessada, mas também o contexto geral em que se situam, bem como a situação pessoal do requerente (Akdivar e outros c. Turquia, 16 de Setembro de 1996, § 69, Recueil 1996-IV).

71. A resposta à questão de saber se o recurso individual perante a jurisdição constitucional se impõe por aplicação do artigo 35.º § 1 da Convenção depende largamente das particularidades do sistema jurídico do Estado arguido e da extensão das competências da sua jurisdição constitucional. Assim, num Estado onde estas competências se limitam a um controlo da constitucionalidade e da compatibilidade hierárquica das normas jurídicas, o recurso perante a jurisdição constitucional apenas deve ser exercido quando o requerente põe em causa uma disposição legislativa ou regulamentar como sendo, em si, contrária à Convenção (Grisankova e Grisankovs c. Letónia (dec.), n.º 36117/02, CEDH 2003-II). Em contrapartida este recurso não é efetivo quando o requerente apenas denuncia um erro na interpretação ou na aplicação de uma lei ou de um regulamento que, em si, não são inconstitucionais (Szott-Medynska c. Polónia (dec.), n.º 47414/99, 9 de Outubro de 2003, e Smirnov c. Rússia (dec.), n.º 14085/04, CEDH, 6 de Julho de 2006).

72. Debruçando-se sobre o presente caso, o Tribunal verifica desde logo que não se contesta que o recurso constitucional em Portugal apenas pode ser relativo a uma disposição “normativa” e não a uma decisão judicial (Colaço Mestre e SIC – Sociedade Independente de Comunicação S.A. c. Portugal (dec.), n.ºs 11182/03 e 11319/03, 18 de Outubro de 2005).

73. Releva, ainda, que a Requerente suscitou perante o Tribunal Constitucional vários argumentos retirados de uma inconstitucionalidade da interpretação dada pelas jurisdições, de certas disposições da LPCJP (parágrafo 51 supra) para denunciar o caráter desproporcionado, a seus olhos, da medida de colocação em instituição dos seus filhos com vista à sua adoção. Uma vez que esta parte do recurso de constitucionalidade incide sobre a decisão judicial em si, e não sobre uma inconstitucionalidade de normas, está condenada ao fracasso.

74. Tratando-se do argumento retirado de um caráter não conforme à Constituição da ausência de obrigação de representação por um advogado, perante as jurisdições de primeira instância, dos pais de uma criança sendo objeto de um processo de proteção, o Tribunal entende que não pode especular sobre a admissibilidade e o resultado potencial desta parte do recurso. Além do mais, supondo mesmo que a Requerente obtenha uma decisão em seu favor e que o caso seja reenviado para a primeira instância, deverá ainda apresentar os seus fundamentos de queixa retirados de eventuais prejuízos decorrentes da medida litigiosa, e isto no quadro de uma ação de responsabilidade civil contra o Estado com o fim de obter uma indemnização. Neste quadro, o Tribunal entende que não é exigível da Requerente que espere mais tempo que o Tribunal Constitucional profira a sua decisão, uma vez que a medida de proteção foi executada em 8 de Junho de 2012, ou seja, já há mais de três anos (ver mutatis mutandis, Guillemin c. França, 21 de Fevereiro de 1997, § 50, Recueil 1997-I).

75. Tendo em conta o que precede, o Tribunal entende que é de rejeitar a exceção do Governo.

 

3. Conclusão

76. Verificando que a queixa não está manifestamente mal fundamentada no sentido do artigo 35.º § 3 a) da Convenção e que não depara, no mais, com nenhum outro motivo de inadmissibilidade, o Tribunal declara-a admissível.

 

B. Do fundo

1. Argumentos das partes

a) A Requerente

77. A Requerente alega que a medida litigiosa de colocação com vista à adoção, aplicada a respeito de sete dos seus filhos e executada em relação a seis de entre eles, constituiu uma ingerência desproporcionada no seu direito ao respeito da sua vida familiar. Contestando os factos considerados como estabelecidos pelas jurisdições internas, sustenta que os seus filhos não estavam expostos a nenhuma violência física ou psicológica e que a sua colocação apenas se fundou na sua situação de precariedade social. Ela queixa-se da aplicação de medidas diferentes em relação às suas crianças e indica não entender porque é que a medida de apoio aos pais foi aplicada em relação à sua filha I. enquanto que a via da adoção, mais dura em seu entender, foi escolhida para os seus filhos mais novos.

78. Queixando-se de facto de medidas menos radicais a respeito dos seus filhos mais novos não terem sido consideradas, a Requerente alega não ter recebido uma assistência social adequada da parte dos serviços sociais antes da colocação, em instituição, dos seus filhos com vista à adoção. Refere-se, a título de provas, aos vários relatórios nos quais as jurisdições internas se apoiaram e estima que estes mostram que os serviços sociais permaneceram surdos em relação ao seu desamparo e do facto de ela continuar a lutar sozinha para sustentar a sua família. Nega ter cessado a sua colaboração com os serviços sociais, precisando que não recebeu nenhuma visita da parte destes no ano precedendo a aplicação da medida de colocação.

79. A Requerente queixa-se, ainda, de ter sido forçada a incluir no acordo celebrado com os serviços sociais uma cláusula segundo a qual ela se comprometia a sofrer uma operação de esterilização enquanto, segundo ela, tal diligência era contrária à sua cultura e à sua religião muçulmana. Afirma ter aceite a inserção desta cláusula em razão do seu estado emocional – frágil, segundo ela – no momento dos factos, e para fazer cessar a insistência dos serviços sociais, com a qual teria sido confrontada. Está convencida que a retirada dos seus filhos foi decidida para a punir por não se ter mandado esterilizar e por ter dado à luz mais quatro filhos. Ela indica que tal é patente no julgamento do Tribunal de Família, em sede do qual este teria salientado que ela não se teria finalmente esterilizado apesar do seu compromisso em se submeter a uma semelhante intervenção.

80. A seguir, a Requerente denuncia o decaimento da sua autoridade parental e a proibição de quaisquer contatos com e entre os seus filhos, colocados em três fogos de acolhimento diferentes, em execução do julgamento do Tribunal de Família. Indicando que esta decisão não era, ainda, definitiva e que as jurisdições teriam reconhecido a ausência de violência física e a existência de laços afetivos com os seus filhos, ela sustenta que estas restrições constituíram, para ela, uma sanção suplementar e que a afastaram dos seus filhos. A título subsidiário, ela queixa-se de não ter recebido nenhuma resposta das autoridades acerca dos diversos pedidos por ela apresentados, para ter acesso aos seus filhos. Ela indica que a sua mais pequena tinha seis meses quando lhe foi retirada e que a execução imediata da medida e a proibição absoluta de qualquer contato impediram, assim, o estabelecimento de qualquer laço com esta. Queixa-se de não ter podido rever os seus filhos a não ser após a indicação das medidas provisórias pelo Tribunal, ordenadas a título do artigo 39.º do Regulamento. Acrescenta, a título subsidiário, que os relatórios mostram que as crianças reagiram com entusiasmo ao restabelecimento dos contatos com ela.

81. A nível processual, a Requerente queixa-se de não ter podido participar efetivamente no processo.

Em primeiro lugar, precisa que não foi representada por um advogado senão a partir de 25 de Maio de 2012, data da sentença do Tribunal de Família, e que não o fora, anteriormente, e isto, apesar, segundo ela, da complexidade do processo e da gravidade do que estava, para ela, em causa. Entende que não estava, assim, em condição de defender os seus interesses, uma vez que não lhe foi possível apresentar os seus meios de prova, e que o tribunal não permitiu a sua participação efetiva no processo por não lhe ter explicado o que se estava a passar. Sobre este ponto, alega, por exemplo, que não pôde assistir à audição das diferentes testemunhas durante o debate judicial de 16 de Maio de 2012.

Queixa-se, ainda, que as alegações do Ministério Público não teriam sido levadas ao seu conhecimento, o que não lhe teria permitido entender o que estava em causa no processo e, em particular, o pedido de colocação dos seus filhos com vista à sua adoção considerada no despacho do tribunal de 26 de Janeiro de 2012. Para mais, censura o Tribunal de Família por ter aplicado a medida de colocação a respeito dos seus sete filhos mais novos, a saber M., Y., I.R., l., M.S., A. e R., enquanto que esta medida apenas tinha sido, segundo ela, pedida pelo Ministério Público, para os cinco mais novos.

Para terminar, a Requerente queixa-se do facto de o Tribunal de Família apenas se ter baseado nos relatórios dos serviços sociais e de não ter determinado nenhuma perícia que lhe permitisse apreciar a sua capacidade em exercer as suas funções parentais, avaliando a maturidade e o equilíbrio afetivo e emocional dos seus filhos. Alega, ainda, que os meios de prova que apresentou em apoio do seu recurso perante o Tribunal da Relação não foram tomados em consideração, o qual, tal como o Supremo Tribunal, se limitou a confirmar a sentença do Tribunal de Família sem proceder a um exame crítico dos factos. Estima ter sofrido o processo sem nunca ter podido trazer um qualquer elemento de prova em sua defesa.

82. Por outro lado, a Requerente pede ao Tribunal que ordene a manutenção das visitas aos seus filhos e entre estes.

 

b) O Governo

83. O Governo reconhece que a colocação dos filhos da Requerente em instituição com vista à sua adoção constituiu uma ingerência no direito desta ao respeito da vida familiar. É, todavia, do entendimento de que esta ingerência se justificava tendo em atenção o interesse superior das crianças, com fundamento em que estas últimas teriam ficado em perigo em razão das negligências da Requerente e do seu cônjuge, e que a situação não teria conhecido nenhuma melhoria apesar da aplicação de uma medida de apoio aos pais durante vários anos.

84. Tratando-se da necessidade da medida, o Governo sustenta que o pai estava ausente do lar e que a Requerente demonstrava uma grande negligência a respeito dos seus filhos. Indica que a família era seguida, desde o ano de 2005, pelos serviços sociais, e, de modo mais sustentado, desde a celebração do acordo com a Requerente em 2007, o que levou à aplicação de uma medida de apoio aos pais tendo em consideração a situação das crianças. Acrescenta que esta medida conduziu os serviços sociais a efetuar um acompanhamento estreito da família por meio, nomeadamente, de encontros e de visitas ao domicílio e na escola. Afirma que a colocação dos filhos em instituição foi, então, encarada como uma solução para as crianças mais novas e que esta medida apenas foi aplicada depois do fracasso das outras medidas. Indica que, para fundamentar o seu julgamento, o Tribunal de Família teve em conta os interesses concorrentes em jogo e que se apoiou nos testemunhos dos trabalhadores sociais, da Requerente e do seu cônjuge, bem como da filha mais velha do casal, e nos diferentes relatórios sociais. Precisa que este relatórios tinham permitido evidenciar o que segue: uma falta de higiene e de segurança ao nível da habitação familiar; uma falta de acompanhamento médico das crianças; um absentismo escolar das crianças; carências alimentares e de vestuário; negligências administrativas, como, por exemplo, a falta de inscrição de uma das filhas dos requerentes no registo civil bem como a situação irregular da Requerente no País.

O Governo indica, ainda, que a Requerente não tinha designado uma pessoa do circulo familiar que pudesse constituir um apoio para família.

85. No que respeita à operação de esterilização, o Governo afirma que a Requerente se havia por vontade própria, comprometido, em 2009, a sofrer uma tal operação no quadro do acordo de promoção e de proteção. Acrescenta que o objetivo era unicamente o de permitir o acompanhamento de um programa de planeamento familiar pela Requerente, e não o de constrangê-la a um método contracetivo específico. Expõe, ainda, que as jurisdições não tomaram este elemento em conta na sua decisão e que este não teve, assim, nenhuma influência ao nível do processo: a este respeito, precisa que o Tribunal de Família relevou no seu julgamento a ausência de acompanhamento de um planeamento familiar e não a de um método específico de contraceção.

86. O Governo conclui que a medida litigiosa era adequada, proporcional e, assim, necessária numa sociedade democrática, e que não infringiu, nestes termos, o artigo 8.º § 2 da Convenção. É de parecer que ela pertence, de resto, à margem nacional de apreciação, que as autoridades estão melhor colocadas para determinar a solução a aplicar em relação a uma situação concreta e que, por conseguinte, o Tribunal não deveria reabrir factos já considerados estabelecidos no plano interno.

87. No que respeita à impossibilidade para a Requerente de ter acesso aos seus filhos, o Governo explica que esta decorre da própria medida de colocação com vista à adoção, por aplicação do artigo 1978.º - A do Código Civil e do artigo 62.º-A da LPCJ.

 

 

 

2. Apreciação do Tribunal

a) Princípios gerais

88. O Tribunal recorda que, o facto de uma parente e o seu filho estarem juntos, representa para eles um elemento fundamental da vida familiar (Kutzner, supra, § 58): medidas internas que os impeçam de estar juntos constituem uma ingerência no direito protegido pelo artigo 8.º da Convenção (K. e T. c. Finlândia [GC], n.º 25702/94, § 151, CEDH 2001-VII). Tal ingerência desconhece o referido artigo 8.º exceto quando, “prevista na lei”, ela prossegue um ou mais fins legítimos à luz do segundo parágrafo desta disposição e é “necessária numa sociedade democrática” para os alcançar (Gnahoré c. França, n.º 40031/98, §50, CEDH IX, e Pontes, supra, § 74). A noção de “necessidade” implica uma ingerência assentando numa necessidade social imperiosa e, nomeadamente, proporcional ao fim legítimo que se procura (Couillard Maugery c. França, n.º 64796/01, § 237, 1 de Julho de 2004). Para apreciar a “necessidade” da medida litigiosa “numa sociedade democrática”, convém, assim, analisar, à luz do conjunto do caso, se os fundamentos invocados em apoio desta eram pertinentes e suficientes para os fins do parágrafo 2 do artigo 8.º da Convenção.

89. O facto de uma criança poder ser acolhida num quadro mais propício à sua educação não justifica, só por si, que esta seja retirada pela força aos cuidados dos seus pais biológicos; semelhante ingerência no direito dos pais, a título do artigo 8.º da Convenção, a gozarem de uma vida familiar com o seu filho, deve ainda revelar-se “necessária” em razão de outras circunstâncias (K. e T., supra, § 173, e Kutzner, supra, § 69). Para mais, o artigo 8.º da Convenção coloca a cargo do Estado obrigações positivas inerentes ao “respeito” efetivo da vida familiar. Assim, aí onde a existência de um laço familiar está estabelecida, o Estado deve, em princípio, agir de modo a permitir a este laço desenvolver-se e adotar as medidas adequadas para reunir o parente e a criança interessados (Kutzner, supra, § 61).

90. No exame da necessidade da ingerência, o Tribunal tomará em conta o facto de que a conceção que se tem do caráter oportuno de uma intervenção das autoridades públicas nos cuidados a prestar a uma criança, varia de um Estado para o outro em função de elementos tais como as tradições relativas ao papel da família e à intervenção do Estado nos assuntos familiares, bem como em função dos recursos que podem ser dedicados a medidas públicas neste domínio particular. Resta que o interesse superior da criança reveste, em cada caso, uma importância decisiva. Há que não perder de vista que as autoridades nacionais beneficiam de relações diretas com todos os interessados (Olsson c. Suécia (n.º 2), 27 de Novembro de 1992, § 90, Série A, n.º 250), muitas vezes a partir do momento em que são consideradas medidas de colocação, ou logo a seguir à sua operacionalização. Decorre destas considerações, que o Tribunal não tem por função substituir-se às autoridades internas no exercício das suas responsabilidades em matéria de regulamentação das questões de tomada a cargo de crianças pela autoridade pública e dos direitos dos pais cujos filhos foram assim colocados, mas o controlar sob o ângulo da Convenção as decisões que estas proferiram no exercício do seu poder de apreciação (Hokkanen c. Finlândia, 23 de Setembro de 1994, § 55, Série A, n.º 299-A, Johansen c. Noruega, 7 de Agosto de 1996, § 64, Recueil 1996-III, e K. e T., supra, § 154).

91. O Tribunal recorda, também, que, se a fronteira entre as obrigações positivas e as obrigações negativas do Estado a título do artigo 8.º da Convenção não se presta a uma definição precisa, os princípios aplicáveis são todavia comparáveis. Em particular, nos dois casos, há que ter em conta o justo equilíbrio que deve ser respeitado entre os interesses concorrentes – os da criança, os dos dois pais e os da ordem pública (Maumousseau e Washington c. França, n.º 39388/05, § 62, CEDH 2007-XIII) -, tendo em conta todavia que o interesse superior da criança deve constituir a consideração determinante (ver, neste sentido, Gnahoré, supra, § 59), podendo segundo a sua natureza e a sua gravidade, prevalecer sobre o dos pais (Sahin c. Alemanha [GC], n.º 30943/96, § 66, CEDH 2003-VIII). Além do mais, a dispersão de uma família constitui uma ingerência muito grave; uma medida conducente a uma semelhante situação deve, assim, assentar sobre considerações inspiradas pelo interesse da criança e de um peso e de uma solidez bastantes (Scozzari e Giunta c. Itália, [GC], n.ºs 39221/98 e 41963/98, § 148, CEDH 2000-VIII). O afastamento da criança do contexto familiar é uma medida extrema, à qual apenas deveria recorrer-se num quadro urgente de necessidades. Para que uma medida deste tipo se justifique, deve responder à necessidade de proteger a criança confrontada com um perigo imediato (Neulinger e Shuruk c. Suiça [GC], n.º 41615707, § 136, CEDH 2010).

92. Pertence a cada Estado contratante dotar-se de um arsenal jurídico adequado e suficiente para assegurar o respeito por estas obrigações positivas que lhe incumbem, em virtude do artigo 8.º da Convenção, e ao Tribunal procurar se, na aplicação e interpretação das disposições legais aplicáveis, as autoridades internas respeitaram as garantias do artigo 8.º, tendo nomeadamente em conta o interesse superior da criança (ver, mutatis mutandis, Neulinger e Shuruk, supra, § 141, CEDH 2010, e K.A.B. c. Espanha, n.º 59819/08, § 115, 10 de Abril de 2012).

93. O Tribunal repete que, se as autoridades gozam de ampla latitude para apreciar, em particular, a necessidade de tomar a cargo uma criança, ele deve no entanto ter adquirido a convicção de que, no caso em questão, existiam circunstâncias justificando a retirada da criança. Incumbe ao Estado requerido estabelecer que as autoridades avaliaram com cuidado, antes de executarem uma tal medida, a incidência que teria sobre os pais e a criança a medida de adoção considerada bem como soluções diferentes da tomada a cargo da criança (K. e T., supra, § 166, e Kutzner, supra, § 67). O Tribunal exerce, ainda, um controlo mais severo sobre as restrições suplementares, como as que as autoridades fazem ao direito de visitas dos pais, bem como sobre as garantias destinadas a assegurar a proteção efetiva do direito dos pais e dos filhos ao respeito da sua vida familiar. Estas restrições suplementares comportam o perigo de amputar as relações familiares entre os pais e uma criança jovem (Gnahoré, supra, § 54, e Sahin, supra, § 65). Por um lado é certo que garantir às crianças uma evolução num ambiente saudável releva do interesse da criança e que o artigo 8.º não pode autorizar um parente a determinar a adoção de medidas prejudiciais à saúde e ao desenvolvimento dos seus filhos (Sahin, supra, § 66). Por outro lado, resulta claro que corresponde ao interesse da criança que os laços entre ela e a sua família sejam mantidos, exceto nos casos em que esta se tenha mostrado particularmente indigna: quebrar este laço reconduz-se a cortar a criança das suas raízes. Resulta daí que o interesse da criança determina que apenas circunstâncias perfeitamente excecionais possam conduzir a uma rutura do laço familiar e que tudo seja feito para manter as relações pessoais e, sendo disso caso, chegado o momento, “reconstituir” a família (Gnahoré, supra, § 59, e Pontes, supra, § 85).

94. Embora o artigo 8.º da Convenção não encerre nenhuma condição explícita de processo, o processo decisório ligado às medidas de ingerência deve ser equitativo e adequado a respeitar os interesses protegidos por esta disposição. Convém, assim, determinar, em função das circunstâncias de cada caso, e nomeadamente da gravidade das medidas a adotar, se os pais puderam desempenhar no processo decisório, visto como um todo, um papel suficientemente importante para que seja concedida a proteção necessária aos seus interesses. Na negativa, verifica-se uma falta quanto ao respeito da sua vida familiar, e a ingerência resultante da decisão não pode ser considerada “necessária” no sentido do artigo 8.º (W. c. Reino-Unido, 8 de Julho de 1987, § 64, Série A, n.º 121, e Assunção Chaves c. Portugal, n.º 61226/08, §§ 82-84, 31 de Janeiro de 2012).

 

b) Aplicação destes princípios ao caso sub judice

95. No caso, o Tribunal nota que as partes não contestam que a medida de colocação litigiosa – determinada a respeito de sete dos seus filhos, M., Y., I.R., L., m.S., A. e R., e executada em relação aos seis mais novos -, o decaimento da autoridade parental e a proibição de qualquer visita, decididos pela sentença do Tribunal de Família de Lisboa Nordeste – Sintra, de 25 de Maio de 2012, constituíram “ingerências” no exercício do direito da Requerente ao respeito da sua vida familiar. O Tribunal não vislumbra razão para concluir diversamente.

96. O Tribunal observa, ainda, que as partes concordam em dizer que as ingerências tinham uma base legal. Nota igualmente que as medidas litigiosas supra referidas repousavam no artigo 35.º par. 1 g) da LPCJP e o artigo 1978.º-A do Código Civil, e que eram, deste modo, “previstas na lei”.

97. Ressalta dos fundamentos fixados pelas autoridades judiciárias internas que as decisões denunciadas pela Requerente tinham por objetivo a salvaguarda dos interesses das crianças. As ingerências de que se trata prosseguiam assim uma finalidade legítima prevista no artigo 8.º § 2 da Convenção: “ a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros”. A questão que se coloca portanto, é a de saber se as medidas eram “necessárias numa sociedade democrática” para alcançar a finalidade legítima prosseguida nas circunstâncias particulares do caso. Mais particularmente, trata-se de saber se a aplicação das disposições legislativas feita no caso garantiu um justo equilíbrio entre o interesse superior da criança e os outros interesses concorrentes em jogo.

i. Observações prévias

98. A título liminar, o Tribunal toma nota das observações finais e das recomendações apresentadas pelo Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, adotadas em 31 de Janeiro de 2014 relativas à situação das famílias vivendo numa situação de pobreza persistente em Portugal (ver as observações e recomendações n.ºs 39-42 e 57-58 retomadas no parágrafo 57, supra).

99. A seguir, no presente caso, o Tribunal observa o que segue.

Primeiro, a família da Requerente foi alvo de uma primeira identificação pela CPCJ em 2005, dado que a Requerente estava sem emprego e que o seu cônjuge, o pai das crianças, se encontrava frequentes vezes ausente do domicílio por causa da sua poligamia.

Seguidamente, um acordo de promoção dos direitos e de proteção das crianças foi celebrado em 4 de Janeiro de 2007 entre a Requerente, o seu cônjuge e a CPCJ, por aplicação do artigo 55.º da LPCJP, relativo a E. (então com idade de 11 anos), I. (então com 5 anos), M. (então com 2 anos), Y.(então com 1 ano) e I.R. (então com três meses). Nos termos deste acordo, a Requerente tinha-se comprometido, nomeadamente, a procurar um emprego, a melhorar as condições de vida na sua habitação, e a organizar a sua vida de modo a permitir às crianças irem à escola e, sendo disso caso, a frequentarem infantários e creches. Sempre nos termos deste acordo, a CPCJ se havia comprometido, por seu turno, a acompanhar e a apoiar a execução do acordo por meio de recomendações, sugestões e propostas (par. 9 supra).

O processo de promoção dos direitos e de proteção das crianças em perigo foi oficialmente aberto em 26 de Setembro de 2007, a pedido da CPCJ, que tinha levado ao conhecimento do Ministério Público junto do Tribunal de Família de Sintra a falta de colaboração da Requerente no quadro do acordo, nomeadamente a ausência de condições materiais adequadas e existência de negligência. Uma medida de apoio aos pais a respeito das crianças foi então aplicada, em 21 de Dezembro de 2007, nos termos do artigo 39.º da LPCJP. Concretizou-se por via do apoio prestado à Requerente por um trabalhador social da ECJ que a procurou ensinar a organizar o seu lar e a cuidar dos seus filhos (parágrafos 15-17 supra).

No final de uma audiência que decorreu em 25 de Junho de 2009, na presença da Requerente e do seu cônjuge, foram introduzidas cláusulas suplementares ao acordo de proteção, segundo as quais, nomeadamente, a Requerente se comprometia a regularizar a sua situação em Portugal, a apresentar um conjunto documental com vista a obter um apoio financeiro, a designar uma pessoa de confiança no círculo familiar e social e a submeter-se a uma operação de esterilização por laqueação das trompas (parágrafo 18, supra).

Enfim, entre o dia 10 de Setembro de 2009 e o dia 24 de Junho de 2011, a Requerente foi alvo de vários controlos da parte da ECJ.

100. O Tribunal nota, ainda, que a ECJ transmitiu cinco relatórios ao tribunal assinalando, nomeadamente, as gravidezes precoces das duas filhas mais velhas, as condições de habitação sempre precárias e insalubres, o absentismo escolar pontual de alguns dos filhos, mas também a existência de bons resultados na escola, no que respeitava a E. e I., a ausência de atualização das vacinas, relativamente a M., l., M.S. e A., a falta de higiene observada nas crianças bem como o desrespeito do compromisso assumido pela Requerente, no sentido de ser esterilizada.

101. O Tribunal observa, também, que, no plano financeiro, a ECJ assinalava que a Requerente continuava sem emprego e que recebia 393 EUR mensais de abonos familiares, que o pai tinha declarado um rendimento mensal de 366 EUR e que os pais ainda não tinham apresentado um requerimento com vista à obtenção de um apoio financeiro.

102. O Tribunal verifica ainda que, na sua sentença de 25 de Maio de 2012, o Tribunal de Família ordenou três tipos de medidas: uma medida de apoio à autonomia a respeito de E. (então com idade de 17 anos), uma medida de apoio à Requerente no que respeita a I. (então com idade de 11 anos) e uma medida de colocação em instituição com vista à adoção de M., (então com 8 anos), Y. (então com 7anos), I.R. (então com 6 anos), L. e M.S. (então com 4 anos), A. (então com 3 anos) e R. (então com 7 meses).

103. O objeto da queixa incide assim sobre a medida determinada a respeito dos sete filhos mais novos da requerente, confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa e, em última instância pelo Supremo Tribunal no seu acórdão de 17 de Setembro de 2015, e executada em relação aos seis mais novos (parágrafo 35, supra).

 

ii. Sobre a medida de colocação em instituição dos sete filhos mais novos da Requerente com vista à sua adoção

a) A situação de precariedade da Requerente

104. O Tribunal verifica que era essencialmente censurado à Requerente, o não oferecer as condições materiais adequadas aos seus filhos e o tê-los negligenciado.

105. O Tribunal recorda que não lhe cabe substituir a sua apreciação à das autoridades nacionais competentes quanto às medidas que deveriam ter sido adotadas uma vez que estas, com efeito, estão melhor colocadas para proceder a uma tal avaliação, em particular porque estão em contato direto com o contexto do caso e as partes envolvidas (Reigado Ramos c. Portugal, n.º 73229/01, § 53, 22 de Novembro de 2005). Sendo assim no caso, entende desde logo, que era objetivamente evidente que a situação da Requerente era particularmente frágil, atendendo a que tinha uma família numerosa a seu cargo, no caso dez crianças, que, para mais, ela criava sozinha, em razão da ausência do seu cônjuge.

106. Ora verifica-se que a Requerente sobrevivia com 393 EUR de diversos abonos familiares por mês, e que ela assegurava as necessidades alimentares e de vestuário da família, com recurso ao Banco Alimentar e a donativos provenientes de particulares ou de associações. Apesar da carência material manifesta, verificada ao longo das diversas visitas ao domicilio da Requerente, as autoridades internas não tentaram suprir estas carências por meio de um apoio financeiro suplementar para cobrir as necessidades primárias da família (por exemplo, em matéria de alimentação, de eletricidade e de água corrente) e as despesas de acolhimento das crianças mais pequenas em creches familiares, de modo a permitir à interessada o exercício de uma atividade profissional remunerada. Na realidade, verifica-se que os serviços sociais que tinham a cargo o acompanhamento da família, esperavam, da parte da Requerente, para além da regularização da sua situação no País, a apresentação formal de um requerimento assinado, descrevendo as necessidades que os próprios Serviços já haviam verificado e comunicado. (parágrafos 23 e 26, supra). O Tribunal entende que as autoridades já deveriam ter adotado medidas concretas para permitir às crianças viverem com a sua mãe, antes de as colocar e de abrir um processo de adoção. Por outro lado, o Tribunal recorda que o papel das autoridades de proteção social é precisamente o de ajudar as pessoas em dificuldade, de as orientar nas suas diligências e de as aconselhar, entre outros, quanto aos diferentes tipos de prestações sociais disponíveis, quanto às possibilidades de obterem um alojamento social ou quanto aos outros meios de ultrapassarem as suas dificuldades (Saviny c. Ucrânia, n.º 39948/06, § 57, 18 de Dezembro de 2008, e R.M.S. c. Espanha, n.º 28775/12, § 86, 18 de junho de 2013). No caso das pessoas vulneráveis, as autoridades devem fazer prova de uma atenção particular e devem-lhes assegurar uma proteção acrescida (B. c. Roménia (n.º 2), n.º 1285/03, §§86 e 114, 19 de Fevereiro de 2013, Todorova c. Itália, n.º 33932/06, § 75, 13 de Janeiro de 2009, e Zhou c. Itália, n.º 33773/11, § 58, 21 de Janeiro de 2014).                                                                                                          

107. Se é verdade que, em certos casos declarados inadmissíveis pelo Tribunal, a colocação das crianças foi motivada por condições de vida não satisfatórias ou privações materiais, tal nunca foi o único motivo que serviu de fundamento à decisão dos tribunais nacionais: a estes acresciam outros elementos como as condições psíquicas dos pais ou a sua incapacidade afetiva, educativa e pedagógica (ver, por exemplo, Rampogna e Murgia c. Itália (dec.), n.º 40753/98, 11 de Maio de 1999, e M.G. e M.T.A. c. Itália (dec.), n.º 17421/02, 28 de Junho de 2005).

108. No caso, há que verificar que não foram evocadas, em nenhum momento, do processo, situações de violência ou de maus tratos relativamente às crianças (ver, a contrario, Dewinne c. Bélgica (dec.), n.º 56024/00, 10 de Março de 2005, e Zakharova c. França (dec.), n.º 57306/00, 13 de Dezembro de 2005), ou de abusos sexuais (ver, a contrario, Covezzi e Morselli c. Itália, n.º 52763799, § 104, 9 de Maio de 2003, Clemeno e outros c. Itália, n.º 19537/03, § 50, 21 de Outubro de 2008, e Errico c. Itália, n.º 29768/05, § 48, 24 de Fevereiro de 2009). Os tribunais também não verificaram carências afetivas (ver a contrario, Kutzner, supra, § 68, e Barelli e outros c. Itália (dec.), n.º 15104/04, 27 de Abril de 2010), ou, ainda, um estado de saúde preocupante ou um desequilíbrio psíquico dos pais (ver, a contrario, Bertrand c. France (dec.), n.º 57376/00, 19 de Fevereiro de 2002, e Couillard Maugery, supra, § 261). Pelo contrário, verifica-se que os laços afetivos entre a Requerente e os seus filhos eram particularmente fortes, o que o tribunal de família salientou na sua decisão (parágrafo 34, supra). Não resulta do processo interno que tenha sido diligenciado por uma perícia das crianças, pelo menos das mais velhas.

b) O compromisso assumido pela Requerente no quadro do acordo de proteção, com vista a uma esterilização

109. O Tribunal recorda que a dignidade e a liberdade do homem são a essência mesma da Convenção (Christine Goodwin c. Reino-Unido [GC], n.º 28957/95, § 90, CEDH 2002-VI). Na esfera da assistência médica, a imposição de um tratamento sem o consentimento livre, explicito e esclarecido de uma pessoa adulta no pleno gozo das suas capacidades mentais não estaria em conformidade com o direito à integridade física e, a fortiori, com a Convenção (Glass c. Reino-Unido, n.º 61827/00, §§ 82-83, CEDH 200-II, e As Testemunhas de Jeová de Moscovo c. Rússia, n.º 302/02, § 135, 10 de Junho de 2010).

110. O Tribunal salienta que a esterilização constitui uma ofensa muito grave à capacidade de uma pessoa para procriar. Como esta intervenção é relativa a uma das funções corpóreas essenciais dos seres humanos, tem incidência em múltiplos aspetos da integridade da pessoa, inclusive sobre o bem-estar físico e mental bem como a vida emocional, espiritual e familiar. Ela pode ser praticada de modo legítimo, a pedido da pessoa interessada, por exemplo, enquanto modo de contraceção, ou para fins terapêuticos quando a existência de uma necessidade médica está estabelecida de modo convincente. A situação é, todavia, diferente quando um tal tratamento médico é imposto a um paciente adulto e são de espírito, sem o seu consentimento. Um modo de proceder semelhante deve ser considerado incompatível com o respeito da liberdade e da dignidade do homem, que constitui um dos princípios fundamentais da Convenção (V.C. c. Eslováquia, n.º 18968/07, §§ 106-107, CEDH 2011 (excertos) e N.B. c. Eslováquia, n.º 29518/10, § 80, 12 de Junho de 2012).

111. No caso, o Tribunal observa que a falta de seguimento de um planeamento familiar teve por efeito o agravamento da situação material, já difícil, da Requerente. O Tribunal considera, no entanto, que o acrescentar de um compromisso com vista à esterilização da interessada dentro do acordo de proteção estabelecido com os serviços sociais, é particularmente grave (parágrafo 18, supra). O Tribunal entende que os serviços sociais teriam podido aconselhar à Requerente métodos contracetivos menos intrusivos para responder à falta de seguimento de um planeamento familiar, que eles tinham verificado. Além do mais, mesmo supondo que a Requerente tenha deliberadamente aceite semelhante diligência, tal como o defende o Governo, o Tribunal verifica que a interessada recusou finalmente submeter-se á operação em questão e que, contrariamente ao que o Governo sustenta, a sua recusa foi claramente retida contra ela, tanto pelo tribunal de família, quanto pelo Tribunal da Relação e pelo Supremo Tribunal, que aceitaram os factos estabelecidos na primeira instância (par. 34, 41 e 46, supra). Além do mais, o Tribunal insiste em sublinhar como questão de princípio, que o recurso a uma operação de esterilização nunca pode constituir uma condição para a manutenção dos direitos parentais. Assim, o não respeito pela mãe, do seu compromisso em submeter-se a uma tal operação não pode nunca, em nenhum caso, ser retido contra ela, mesmo no caso de um compromisso voluntário e esclarecido da sua parte.

iii. A proibição de quaisquer contactos entre a Requerente e os seus sete filhos mais novos

112. Se o Tribunal não tem por missão substituir-se às autoridades internas para regulamentar as questões de guarda e de visita, incumbe-lhe apreciar, sob o ângulo da Convenção as decisões que estas proferiram no exercício do seu poder de apreciação.

113. No caso, o Tribunal verifica que a proibição de quaisquer contatos entre a Requerente e os seus filhos tendo sido objeto de uma colocação em instituição com vista à adoção, foi pronunciada pela sentença de 25 de Maio de 2012 do tribunal de família, de acordo com o artigo 1978.º - A do Código Civil, que prevê o decaimento da autoridade parental no quadro de toda a medida de colocação com vista à adoção, independentemente das situações concretas. Nota que esta medida foi executada em 8 de Junho de 2012, data da colocação forçada das crianças em instituição, e que se manteve até 5 de Março de 2015, data do levantamento da proibição, na sequência da decisão do Tribunal por aplicação do artigo 39.º do seu Regulamento.

114. O Tribunal reitera a sua posição segundo a qual as restrições suplementares não se justificam à luz do artigo 8.º da Convenção, senão quando a família se mostrou particularmente indigna relativamente à criança. Ora como o Tribunal já o disse precedentemente (parágrafo 108, supra), assim não sucedia, no presente caso. Apesar da ausência de indícios de violência ou de abusos relativamente aos seus filhos, a Requerente foi privada de qualquer direito de visita, quando estas últimas tinham entre 7 meses e 10 anos e enquanto o seu recurso contra a sentença do Tribunal de Família se encontrava pendente. O Tribunal observa, para mais, que as seis crianças efetivamente colocadas foram-no em três instituições diferentes, o que era um obstáculo à manutenção dos laços fraternos. Esta medida não apenas provocou a implosão da família como o da fratria, e foi contra o interesse superior das crianças (Pontes, supra, § 98).

iv. O processo decisório

115. O Tribunal observa que, para motivarem as suas decisões, as jurisdições internas basearam-se essencialmente nos relatórios da CPCJP e da ECJ que tinham acompanhado a Requerente no decurso dos anos anteriores. Nota que não foi determinada nenhuma avaliação psicológica, por um perito independente, para avaliar a maturidade e as capacidades educativas e pedagógicas da Requerente (Saviny, supra, § 58) e que uma perícia psicológica das crianças também não foi julgada necessária, quando se verifica que as filhas mais velhas da Requerente asseguravam um papel educativo crucial junto dos mais jovens, ao ponto de constituírem, para estes, pessoas de referência. O Tribunal verifica que o Tribunal da Relação de Lisboa também não tomou em conta os elementos que a Requerente apresentou em apoio do seu recurso para mostrar que tinha procurado soluções para os seus problemas, depois de ter visto serem-lhe retirados os seus filhos (parágrafo 41, supra). O Tribunal verifica, ainda, que, aquando do reexame do caso, com data de 27 de Março de 2014, o coletivo de três juízes do Tribunal da Relação de Lisboa confirmou, palavra por palavra a decisão precedente do juiz singular por via do processo “copy-paste”, o que não constitui um reexame efetivo da situação (parágrafo 42, supra).

116. Tratando-se da falta alegada de notificação das alegações do Ministério Público no quadro do processo de proteção, o Tribunal entende que, uma vez que não possui o conhecimento direto do processo, não está em medida de resolver a questão de saber se a Requerente recebeu ou não uma notificação destas. Posto isto, verifica que a interessada não estava representada por um advogado no quadro do processo perante o Tribunal de Família, o que, de resto, não era obrigatório no momento dos factos (é agora obrigatória a representação por advogado, desde a entrada em vigor da Lei n.º 142/2015, de 8 de Setembro de 2015, contendo a emenda ao artigo 103.º da LPCJP), exceto no recurso de apelação. Como o Tribunal já o referiu no acórdão Assunção Chaves (supra, § 82), tendo em conta a complexidade e o que estava em causa no processo de proteção de crianças em perigo, e as consequências extremamente gravosas e delicadas que este apresenta, tanto para a criança quanto para os pais envolvidos, o Tribunal entende que precauções e diligências suplementares deveriam ter sido adotadas para assegurar-se, não apenas da compreensão pela Requerente, do que estava exatamente em causa no processo, mas também da sua participação efetiva neste último. O Tribunal verifica que a interessada apenas tomou parte uma vez numa audiência, a saber diante do tribunal de família (parágrafo 33, supra) com o fim da sua audição por esta jurisdição.

117. A título subsidiário, o Tribunal verifica que, desde que está representada por um advogado – ou seja desde a sentença do Tribunal de Família de 25 de Maio de 2012 - , a Requerente levou a sua causa às mais altas instâncias, interpondo recursos e formulando sucessivos pedidos para ter acesso aos seus filhos. Esta sustentada atividade processual contrasta com aquela que fora a sua no quadro do processo perante o Tribunal de Família, no decurso do qual a Requerente não estava representada por um advogado.

 

Conclusões

118. Não obstante a margem de apreciação de que beneficiava no caso o Estado arguido, o Tribunal não considera que a medida de colocação em instituição com vista à sua adoção, pronunciada a respeito de sete dos filhos da Requerente, M., Y., I.R., L., M.S., A. e R., e executada em relação aos seis últimos, na medida em que privava a Requerente dos seus direitos parentais a respeito dos seus filhos e a privava do contacto com eles, provocando a rutura do laço familiar biológico, era pertinente e suficiente à luz do fim legítimo prosseguido e, por conseguinte, necessária numa sociedade democrática. Para chegar a esta constatação, o Tribunal teve particularmente em conta as considerações supra referidas, a saber, a ausência de violência ou de abuso de ordem física (comparar R. e H. c. Reino-Unido, n.º 35348/06, § 85, 31 de Maio de 2011), sexual ou psíquico sobre as crianças, a existência de laços afetivos fortes com estas últimas, a ausência de resposta da parte dos serviços sociais ao desespero material da Requerente, mãe de uma família numerosa, exercendo praticamente sozinha a sua função parental. O Tribunal nota, também, que as autoridades judiciárias não tomaram devidamente em consideração as diferenças culturais no quadro do processo em questão e verifica a pressão exercida sobre a Requerente com vista à sua submissão a uma operação de esterilização no quadro do processo de proteção dos menores.

119. Uma vez que o interesse da criança determina que apenas circunstâncias excecionais possam conduzir a uma rutura do vínculo familiar, e que tudo seja feito para manter as relações pessoais e, sendo disso caso, chegado o momento, “reconstituir” a família (Gnahoré, supra, § 59), o Tribunal considera que as medidas adotadas pelas autoridades judiciárias, de colocação dos filhos da Requerente com vista à sua adoção, privando-a dos seus direitos parentais, não asseguraram um justo equilíbrio entre os interesses em jogo no processo interno (R.e H., supra, § 72). Não se verifica, por outro lado, que as jurisdições tenham encarado outras medidas menos constrangedoras, nomeadamente o acolhimento familiar e o acolhimento institucional, estabelecidos pelo artigo 35.º par. 1 e) e f) da lei relativa à proteção das crianças e dos jovens em perigo (parágrafo 61, supra).

120. Em conclusão, na base das considerações precedentes, o Tribunal entende que houve violação do artigo 8.º da Convenção em razão da decisão de colocação em instituição de M., Y., I.R., L., M.S., A. e R. com vista à sua adoção (parágrafos 104-107).

121. Houve, ainda, uma violação do artigo 8.º da Convenção pelo facto de a decisão de colocação das crianças em instituição com vista à sua adoção ter tomado em conta o não respeito, pela Requerente, do seu compromisso de se submeter a uma esterilização por lacagem das trompas (parágrafos 109-111).

122. O Tribunal entende, também, que houve uma ofensa ao direito da Requerente ao respeito da sua vida familiar, por ter sido proibida de quaisquer contactos com os seus filhos. Houve, assim, violação do artigo 8.º da Convenção a este respeito (parágrafos 112-114).

123. Por fim, houve violação do artigo 8.º da Convenção, em razão do processo decisório que conduziu à colocação dos seus filhos em instituição com vista à sua adoção, o qual não foi conduzido de modo equitativo tendo em conta a ausência de implicação efetiva de Requerente (parágrafos 115-117).

 

III. SOBRE A APLICAÇÃO DO ARTIGO 39.º DO REGULAMENTO DO TRIBUNAL

124. O Tribunal recorda que, de acordo com o artigo 44.º § 2 da Convenção, o presente acórdão será definitivo: a) assim que as partes declararem que não pedem o reenvio do caso perante a Grande Chambre; ou b) três meses após a data da prolação do acórdão, se o reenvio do caso diante da Grande Chambre não for pedido; ou c) quando o colégio da Grande Chambre rejeitar o pedido de reenvio formulado por aplicação do artigo 43.º da Convenção.

125. O Tribunal considera que as medidas cuja adoção indicou ao Governo por aplicação do artigo 39.º do seu Regulamento (parágrafos 53-56, supra), devem manter-se em vigor até que o presente acórdão seja definitivo ou que profira uma outra decisão a este respeito. Uma vez tornado definitivo o acórdão, a Requerente poderá, caso seja necessário e se o desejar, formular um novo pedido de medidas provisórias por virtude do artigo 39.º do Regulamento do Tribunal.

 

IV. SOBRE A APLICAÇÃO DO ARTIGO 41.º DA CONVENÇÃO

A. Dano

126. Nos termos do artigo 41.º da Convenção,

“Se o Tribunal declarar que houve violação da Convenção ou dos seus protocolos e se o direito interno da Alta Parte Contratante não permitir senão imperfeitamente obviar às consequências de tal violação, o Tribunal atribuirá à parte lesada uma reparação razoável, se necessário”.

127. A requerente reclama 150 000 Euros (EUR) pelo dano moral.

128. O Governo remete para a prudência do Tribunal.

129. Tendo em conta as circunstâncias do caso e as quatro verificações de violação do artigo 8.º da Convenção constantes dos parágrafos 120, 121, 122 e 123, o Tribunal entende que a Requerente sofreu efetivamente um prejuízo moral. Tendo em conta o conjunto dos elementos de que dispõe e estatuindo, com recurso à equidade, tal como o determina o artigo 41.º da Convenção, o Tribunal considera que há lugar a atribuir à Requerente 15 000 EUR pelo prejuízo moral.

130. Tendo em conta as circunstâncias particulares do presente caso e a necessidade urgente de pôr fim à violação do direito da Requerente ao respeito da sua vida familiar, o Tribunal convida as autoridades internas a reexaminarem, num breve prazo, a situação da Requerente e dos seus filhos M., Y., I.R., l., M.S., A. e R. à luz do presente julgamento e a adotar as medidas apropriadas no interesse superior das crianças (ver mutatis mutandis, Bondavalli c. Itália, n.º 35532/12, §§ 83 e 91, 17 de Novembro de 2015; e R.M.S., supra, § 101).

 

B. Custas e despesas

131. A Requerente não formulou nenhum pedido a título de custas e despesas. O Tribunal entende que não há, assim, que lhe outorgar qualquer montante a este título.

 

C. Juros moratórios

132. O Tribunal considera adequado calcular a taxa de juros de mora com base na taxa de juros da facilidade de empréstimo marginal do Banco Central Europeu acrescida de três pontos percentuais.

 

POR ESTES FUNDAMENTOS, O TRIBUNAL, POR UNANIMIDADE,

1. Declara a queixa admissível;

2. Decide continuar a indicar ao Governo, em aplicação do artigo 39.º do seu Regulamento, que é desejável, no interesse do bom desenrolar do processo, a adoção das medidas adequadas com vista a garantir o direito de visita da Requerente aos seus filhos que foram objeto de uma colocação em instituição com vista à sua adoção até que o presente acórdão seja definitivo, ou que o Tribunal venha a proferir uma outra decisão a este respeito;

3. Diz que houve violação do artigo 8.º da Convenção em razão da decisão de colocação em instituição de M., Y., I.R., L., M.S., A. e R. com vista à sua adoção;

4. Diz que houve violação do artigo 8.º da Convenção em razão do facto de a decisão de colocação das crianças numa instituição com vista à sua adoção, ter tomado em conta o não respeito pela Requerente do seu compromisso em submeter-se a uma esterilização por lacagem das trompas;

5. Diz que houve violação do artigo 8.º da Convenção em razão da interdição de quaisquer contactos entre a Requerente e os seus filhos M., Y., I.R., L., M.S., A. e R. de 8 de Junho de 2012 a 5 de Março de 2015;

6. Diz que houve violação do artigo 8.º da Convenção em razão da falta de implicação efetiva da Requerente no processo decisório que conduziu à colocação em instituição de seis dos seus filhos com vista à sua adoção;

7. Diz que as autoridades internas deverão proceder ao reexame, em breve prazo, da situação da Requerente e dos seus filhos M., Y., I.R., L., M.S., A. e R. à luz do presente acórdão e que deverão adotar as medidas apropriadas no interesse superior das crianças;

8. Diz

a) que o Estado arguido deve pagar à Requerente, nos três meses que seguirem o dia em que o Acórdão se tiver tornado definitivo, nos termos do artigo 44.º 4 2 da Convenção, o montante de 15 000 EUR (quinze mil euros), mais qualquer montante que possa ser devido a título de imposto, por dano moral;

b) que, a contar da expiração do referido prazo e até ao pagamento, este montante será acrescido de um juro simples à taxa igual à da facilidade de empréstimo marginal do Banco Central Europeu que for aplicável durante este período, acrescida de três pontos percentuais;

9. Rejeita o pedido de satisfação equitativa na parte excedente.

Feito em francês e comunicado por escrito em 16 de Fevereiro de 2016, em aplicação do artigo 77.º §§ 2 e 3 do Regulamento do Tribunal.

 

Françoise Elens-Passos    András Sajó

Secretária      Presidente

 

Ao presente acórdão está junta, na conformidade dos artigos 45.º § 2 da Convenção e 74.º § 2 do Regulamento, a exposição da opinião separada do juiz A. Sajó.

          A.S.

          F.E.P.

 

OPINIÃO CONCORDANTE DO JUIZ SAJÓ

Concordo plenamente com o acórdão. Entendo que é importante sublinhar que o interesse superior da criança é – salvo caso excecional – o de estar junto dos pais. A Convenção de 1989, relativa aos direitos da criança prevê, no seu artigo 3.º § 1, que em quaisquer decisões relativas às crianças, dimanem elas das instituições públicas ou privadas de proteção social, de tribunais, das autoridades administrativas ou dos órgãos legislativos, o interesse superior da criança deve ser uma consideração primordial. Uma consideração primordial não exclui a existência de outras considerações e, em presença de um direito convencional, há que fazer-se um esforço para harmonizar os vários interesses. É, no entanto, de sublinhar que o interesse superior da criança não é, em princípio, oposto ao direito fundamental dos pais a viverem uma vida familiar com os seus filhos. A regra do interesse superior da criança não pode ser interpretada como uma regra excluindo os direitos fundamentais dos pais. Encontramos, de resto, esta consideração no artigo 9.º § 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança:

“Os Estados Partes garantem que a criança não é separada de seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, [...], que essa separação é necessária no interesse superior da criança”.

Do mesmo modo, o Tribunal reconheceu que está tanto no interesse da criança quanto no interesse dos seus pais que os laços entre ela e a sua família sejam mantidos , exceto nos casos em que esta se tenha mostrado particularmente indigna: quebrar estes laços é cortar a criança das suas raízes. Resulta daí que o interesse da criança impõe que apenas circunstâncias muito excecionais possam conduzir a uma rutura do vínculo familiar, e que tudo seja feito para manter as relações pessoais, e sendo caso disso, no momento próprio, “reconstituir” a família (Gnahoré c. França, n.º 40031/98, § 59, CEDH 2000-IX).

Segundo os princípios que se extraem da jurisprudência do Tribunal, aí onde a existência de um laço familiar com uma criança está estabelecida, o Estado deve agir de modo a permitir a este elo desenvolver-se e conceder uma proteção jurídica tornando a integração desta criança na sua família possível (ver, mutatis mutandis, Kroon e outros c. Países-Baixos, 27 de Outubro de 1994, Série A, n.º 297-C, § 32, e Wagner e J.M.W.L. c. Luxemburgo, n.º 76240/01, 28 de Junho de 2007). Para um parente e o seu filho, estarem juntos representa um elemento fundamental da vida familiar. De resto, para que o Tribunal julgue que uma medida contendo uma ingerência no exercício dos direitos protegidos pela Convenção, é “necessária numa sociedade democrática”, é preciso que os fundamentos invocados para justificar a medida em questão sejam pertinentes (e suficientes).

Assim, os direitos dos pais devem ser tomados em conta. O interesse superior da criança entra em jogo quando as obrigações inerentes aos direitos parentais não são observadas pelo parente ou que este utiliza os seus direitos de modo abusivo. As exigências da Convenção não são respeitadas se não se tem em conta a importância da necessidade para os pais e os seus filhos “de estarem juntos” (ver neste sentido o acórdão Gnahoré citado supra).

Na origem da compreensão unilateral e absolutista da noção de supremacia do interesse da criança está o desconhecimento da necessidade de interpretar esta noção de modo harmonioso com os outros direitos fundamentais. O absolutismo na interpretação do interesse da criança pode facilmente tornar-se fonte de formalismo administrativo por parte dos serviços de proteção da infância, formalismo que, por seu turno, degenerará a coberto de uma pretensa bem querença paternalista do Estado. A história dos maus tratos para com as crianças e da discriminação é uma história de serviços públicos e privados fornecidos por “salvadores”. Para evitar que esta história se repita, é da mais alta importância que os serviços de proteção da infância respeitem plenamente os direitos fundamentais de todos, inclusive os dos pais, mesmo quando pessoas bem querentes estão convencidas que não fazem senão servir pelo melhor o interesse das crianças.